Índia, Varanasi - Holi: vermelho, amarelo, verde, muito rosa e algum preto

Hiranyakashipu era o rei dos demónios. Era imortal e arrogante. Possuidor de um ego enorme obrigava que todo o seu reino, todos os seus súbditos, o idolatrassem e venerassem como um deus. Apenas o seu filho, Prahlad, não o fazia. Este sempre se manteve fiel ao Deus Vishnu.
Hiranyakashipu não tolerava esta fidelidade. Fez várias tentativas para matar o seu próprio filho, mas sempre sem sucesso.

O demónio chamou então a sua irmã, Holika. Esta era possuidora de um manto que a protegia do fogo. Hiranyakashipu e Holika combinaram entre si que a irmã entraria numa enorme fogueira juntamente com Prahlad. Holika ficaria protegida do fogo, salvar-se-ia e o filho do rei demónio morreria queimado.
Ardilosamente elas convenceram Prahlad a sentar-se ao seu colo e nesse momento, Holika acendeu a fogueira. Mas não sabia que o seu manto só a protegia do fogo se ela estivesse sozinha nele. Estando com outras pessoas o manto não exercia a sua protecção.
Enquanto Holika morria queimada, Vishnu premiou a devoção de Prahlad salvando-o das chamas da fogueira enquanto castigava o demónio Hiranyakashipu, retirando-lhe a imortalidade.


O festival Holi, de Holika, pretende celebrar a vitória do bem sobre o mal. As fogueiras que se acendem ainda na véspera do Holi, têm uma boneca no topo que representa Holika a ser queimada.



Os monovolumes já rolavam há várias horas desde que tinham saído de Khajuraho.
À meia noite, cruzou-se o dia 23 de Março, o dia do festival Holi. Alguns minutos antes, já se notava nas estradas e em pequenas localidades, a agitação de um dos maiores festivais do calendário indiano.

Ao longo das estradas várias fogueiras, grandes e pequenas, iluminavam de laranja e amarelo forte as bermas. Havia música e pessoas dançavam nas ruas, muitas já com os rostos e vestes coloridos.
Este era um dos grandes motivos pelo qual estava nesta viagem à Índia: o festival Holi.
De acordo com a lenda de Holika, o Holi que é celebrado na chegada da Primavera, comemora as suas cores, a sua abundância e a vitória do bem sobre o mal.
Queimam-se coisas velhas. Com elas vão as más memórias e os maus espíritos que nelas habitam.




Após quase sete horas de viagem, os combos finalmente chegaram à cidade mais sagrada da Índia.
Em Varanasi, a partir de um certo ponto os carros não estão autorizados a passar.
Penetramos a pé na Varanasi sagrada, a Varanasi do rio Ganges, Ganga em hindi.
Na noite profunda estas ruas tornam-se ainda mais aquilo que Deli já me tinha mostrado: labirínticas, fechadas, escuras e imundas. Tornam-se irreais e fantasmagóricas.
Vários guardas armados e com coletes à prova de bala estavam presentes em quase todas elas.
De novo sinto a sensação de conforto ao percorre-las. Estes ambientes escurecidos põem a minha adrenalina a correr.


Com a chave do quarto na mão e mochilas em cima da cama, fui ao terraço ver aquilo que me tinha puxado para a Índia: o Ganges, símbolo máximo da sacralidade de Varanasi.
A noite estava escura, pairava uma ligeira neblina, poucas luzes lá ao fundo. O Ganges era indistinto da noite, tão escuro como ela. Mas sentia-o. O silêncio da noite e um espelhado diminuto de uma lua quase inexistente dizia-me que ele estava lá
Estar aqui era mesmo muito importante para mim. Adormeci com dificuldade.

Tinha que fazer duas coisas bem cedo: assistir ao nascer do Sol, e viver, sentir, o Holi o mais intensamente possível e de preferência quando as ghats que nos conduzem ao rio Ganges estavam ainda vazias.

Acordei bem cedo e fui para o terraço. Do meu lado esquerdo, como um rei Midas, o sol fazia dourar tudo à sua volta e recortava as silhuetas dos barcos que cruzavam o rio. Mais para esquerda, para além de um edifício de cúpula dourada estavam as ghats crematórias. Desço para a rua.




E bastou sair do hotel.
De repente sinto um arrepio a percorrer-me desde base do pescoço até ao fundo das costas e encolho-me todo.
Baldes cheios de água cor de rosa foram despejados do topo dos edifícios, em cima de mim. Os pós coloridos - gulal - são diluídos em água e depois atirados a quem quer que passe, sem dó nem piedade.
Ainda não sabia bem o que estava a acontecer e já encharcado, pintado de rosa, dos pés à cabeça e os meus pés chapinham a mesma cor.
Pouco depois vários saquinhos de plástico, bisnagas e balões cheios de água colorida, atirados com força por alguns miúdos voltaram a atingir-me: vermelho, amarelo, verde, muito rosa e algum preto.





Desvio-me e corro atrás dos putos, são quatro, das suas bisnagas e dos saquinhos que ainda seguram nas mãos, por entre becos e ruas estreitas para lhes atirar com os meus sacos. Guerra intensa, sem tréguas.
Tenho-os olhos à minha frente. Com os olhos muito abertos, os pés a bater no chão com força, braços bem abertos e meio curvo para a frente, berro: AHHHHHHH!!! Quero parecer um enorme monstro rosado, imparável e ensandecido.

Pretendo instigar o temor, o pânico nas linhas inimigas e provocar fugas desenfreadas. Consigo exactamente o que pretendo: sorrisos, gargalhadas, pretensas fugas, provocar mais ataques sobre mim e mais ataques sobre eles.




Sou atingido em cheio nas costas por um enorme saco cor de rosa. De novo estou completamente encharcado. O sniper estava dobrado para trás, a gritar de braços esticados, a celebrar intensamente a vitória sobre o Golias.
Tem ar de reguila determinado, parece ser um veterano nas andanças do Holi. Abraço-o, levanto-o no ar e rimos intensamente e genuinamente.


As ghats já ganhavam vida. Mexiam.
Conheço Rial, um puto de 22 anos completamente pintado de prata. O rosto, o cabelo, as pálpebras, o pescoço e até a barba rala, tudo está irrepreensivelmente prateado.
Entre os barcos ancorados no Ganges há quem ande de cabeleiras postiças de cores berrantes. Vacas, cabras e cães apresentam sinais que o Holi já passou por eles.






Enquanto vou falando com Rial, as ghats enchem-se de gente, muita gente. Pulsam e fervilham de vida. Tudo converge para elas. Despeço-me do jovem e mergulho decididamente na multidão.
As mãos de quem circula estão cheias dos pós coloridos: vermelho, amarelo, verde, muito rosa e algum preto.

São mergulhadas nos saquinhos de plástico que já tinha visto antes ou nos bolsos das calças e atirados à cara e depois esfregados nela, por um milhão de braços, por um milhão de mãos. As cores mudam a cada toque delas. Um zapping rápido e desordenado de cores como alguém que não consegue encontrar o canal desejado. Não faço a mínima ideia que cores estão em mim.

Sou abraçado inúmeras vezes. Muita gente se abraça. Parece que não há estranhos neste dia. Rasgam-se sorrisos e exclamações são extrovertidas, espontâneas:

- Holi hai!
- Happy Holi!
- Hi brother!
- Be happy man!
- Take care






Há música, a bombar nas ghats através de telemóveis que são ligados a colunas e pessoas a dançar.
Os grupos arrastam-me para lá e deixo-me ir, outras vezes sou eu que me junto aos grupos. Junto-me a um deles onde o trance de Goa reinava. Gosto de trance. Abano a cabeça e pulo desarticuladamente com os braços no ar com eles.Estou nos antípodas do que costumo ser. Dificilmente alguém me reconheceria neste dia. E não era pela confusão das cores. Antes uma extroversão anormal.

- Go with flow - penso eu, e grito à desgarrada quase desvairadamente:
- Happy Holiii, happy Holiii!!!

Na parte superior das ghats, nos degraus mais altos, pode fazer-se um pedido de desconto de tempo para abrandar, para recuperar.
Protegidos por uma pequena barreira de três ou quatro polícias. há quem descanse, principalmente ocidentais, quem se resguarde do agitado formigueiro colorido para depois lá voltar. Um respirar fundo antes de um novo mergulho nas cores e na multidão.




O sol morde, projectando sombras curtas. O calor aumenta, rondando os 36º. O fim da manhã está brilhante e quente. As ghats esvaziam-se lentamente. Se a manhã é de loucura, a tarde é para a família e amigos.
A pacatez e normalidade regressam ao sagrado rio Ganges que durante várias horas foi completamente esquecido. Três jovens vão fazendo à vez desajeitadas manobras de skate.

Algumas pessoas, todas coloridas, em passo lento, vão dando dois dedos de conversa. Parecem pensativas. Talvez, como eu, com dificuldade em deixar as ghats manchadas de vermelho, amarelo, verde, muito rosa e algum preto, vão vagueando por aqui e por ali.
Até os búfalos de água estão agora em paz, lânguidos e pachorrentos, olhando sem temor para quem passa por eles, no sítio onde mais gostam... na água.








No dia do festival do Holi, das cores, não há castas, não há idades, jovens ou adultos. Não há diferenças religiosas, reverências ou distinções sociais. As religiões tornam-se unas debaixo das suas cores.
Os ricos não levam roupas boas para as ruas, os pobres levam as que têm. Todos vão, todos se riem, todos se abraçam, todos são pintados. A tolerância, o respeito, a reconciliação imperam.
Por um dia, os rancores e as diferenças são anuladas e diluídas nos pós coloridos do Holi, e na sua filosofia: dar as boas vindas à Primavera, ao rejuvenescimento, aos novos começos, às coisas boas da vida, à alegria e celebrar como se não houvesse amanhã.
Neste dia onde literalmente a vida é rosa para todos, milhões de indianos tornam-se um povo único.

No final do dia, cansado, ao tomar banho, via o Holi a escorrer por mim até ao ralo do chuveiro. A água vinha tingida das mesmas cores das horas anteriores: vermelho, amarelo, verde, muito rosa e algum preto.
Percebi então que realmente, como desejava, tinha vivido intensamente um momento muito grande e importante para mim. Um momento que verdadeiramente não cheguei a pensar que poderia vir a acontecer. Talvez por isso ele tenha mesmo acontecido. As melhores coisas, as mais bonitas, não são planeadas, pensadas e muito menos sonhadas. Surgem.

Uma faixa de água unicamente rosada, corria agora por mim e depois para o ralo.
Fechei os olhos e virei o rosto directamente para o chuveiro. Uma puja à minha maneira.
Senti o impacto da água a cair sobre a minha testa, sobre as pálpebras fechadas, sobre o corpo. E numa pequena oração ao Deus Vishnu agradeci-lhe o dia vivido e sorri com um sorriso que não foi desenhado pelos lábios.


Comentários

  1. Mais um belo texto! Sobretudo porque como já te disse, escreves e descreves tudo de uma forma que ao ler-te fico com a sensação de que também estou a viver o que vivencias, o que sentes; também eu me sinto participante dessa viagem.

    "Quero instigar o temor, o pânico nas linhas inimigas e provocar fugas desenfreadas. Consigo exactamente o que pretendo: sorrisos, gargalhadas, pretensas fugas e mais ataques sobre mim e mais ataques sobre eles."

    Acredites ou não estou a visualizar a cena..e rio-me também.:)

    "Por um dia, os rancores e as diferenças são anuladas e diluídas nos pós coloridos do Holi, e na sua filosofia: dar as boas vindas à Primavera, ao rejuvenescimento, aos novos começos, às coisas boas da vida, à alegria e celebrar como se não houvesse amanhã."

    É pena que seja só por um dia mas a mensagem é tão bonita! E de facto, deve ser um privilégio um "outsider" viver um dia assim!
    Pensava que as cores fossem feitas a seco, pintadas pelas pessoas. Nunca imaginei que despejassem baldes pela cabeça abaixo....lol

    "...e sorri com um sorriso que não foi desenhado pelos lábios."
    Fechas com chave de ouro!

    Estou cada vez mais fascinada por este espaço. Obrigada pelo que partilhas:)

    ResponderEliminar
  2. Relato incrível! Obrigada pela partilha do momento. Por minutos, estive no Holi!❤️🙏

    ResponderEliminar

Enviar um comentário