Índia, Varanasi - mais velha que a história

Com quase de dois mil e seiscentos quilómetros de comprimento, O Ganges é um dos maiores rios do continente asiático. Nasce nos Himalaias no norte da Índia e vai desaguar sob a forma de delta, o Delta de Brahmaputra, na Baia de Bengala entre o Bangladesh e o estado indiano Bengala Ocidental, formando o maior delta do mundo. No meio deste imenso trajecto, o Ganges passa por Varanasi.

Varanasi, também chamada Benares e Kashi, é a cidade mais sagrada da religião hindu. Segundo os textos sagrados do hinduísmo - Vedas - a cidade foi fundada pelo próprio Deus Shiva. Ela é simultâneamente uma das cidades mais sagradas e antigas do mundo.
O âmago do pulsar religioso hindu situa-se nesta cidade mais velha que a história.
Há mais de cinco mil anos que Varanasi é habitada em permanência, há mais de cinco mil anos que o ser humano pisa continuamente o seu solo. Sobre ela, Mark Twain escreveria:
"Benares é mais velha que a história, mais velha que a tradição, mais velha que a lenda e é duas vezes mais velha que todas elas juntas."

Não é possível dissociar, separar, a Índia e particularmente Varanasi do rio Ganges, o Ganga Ma. O rio é a deusa mãe. Uma poderosa deusa que tudo perdoa e tudo absolve e purifica. Era por este tão forte e entrelaçado abraço místico e mítico, apertado no tão longínquo tempo, que me tinha levado à Índia.



No Ganges a remos


Nas ghats de Varanasi, o dia começa bem cedo para todos: antes do nascer do sol.
Para quem a visita, é quase obrigatório assistir a um clássico de Varanasi, o nascer do sol num barco no rio e assistir às orações da manhã, as pujas.

Alugou-se um barco a remos. Os remos de Sharma, entram hipnoticamente na água. Por cada entrada na água um splash e um solavanco. A escolha de um barco a remos é perfeita. É silencioso, puro e simples. Há uma cumplicidade inata com o rio e com o dealbar manhã. Avança-se ao ritmo do nascer do sol, ao crescer da manhã e às pujas nas ghats, por oposição aos ruidosos, apressados e desrespeitadores da placidez das horas matutinas, dos barcos a motor. Quebram o silêncio cerimonial e a sacralidade da manhã.

Antes de entrar no barco tinha comprado uma diya a uma pequenita que rondava os barcos. Uma pequena e frágil vela, representando a minha alma, pousada numa cama de pétalas de flores.
O sol nasce do lado oposto às ghats. Como num jogo de ténis, a nossa cabeça, os nossos olhos. seguem ora o sol do lado do rio, ora as pessoas a chegarem às escadarias e começarem as orações da manhã.
Mas nem só de turistas vive o nascer do sol no Ganges. Os locais também se fazem ao rio, orando e fazendo as pujas nos barcos. O rio agita-se e ganha uma vida intensa neste período da manhã.






Acendo a minha diya e pouso-a com cuidado nas águas do Ganges. Sharma diz-me que devo fazer uma oração pelos meus antepassados, ao Deus da minha escolha e um pedido pessoal.
Pelos meus antepassados e não só, é fácil, relativamente a Deus, em Roma sê romano, em Varanasi ora-se a Shiva, mas quando penso no pedido pessoal esbarro no vazio. Sempre tive dificuldade em pensar no quer que seja no me diz respeito. Sou demasiado confuso para conseguir pensar em algo para mim.

A minha oferenda vai portanto mais leve que a dos outros. Vejo-a a afastar-se lentamente levando a minha alma tremulezente e frágil. Uma vulnerável miúda ao encontro do seu destino, se o tiver, ou se o encontrar.




À esquerda, estão as ghats, as fachadas dos edifícios degradados de cores barrentas e desbotadas por séculos de história e de uso, estão enquadradas pelo tom azulado e frio da madrugada. Do lado oposto, o céu está vibrante de vermelho rubro e laranjas flamejantes. De olhos fechados, consigo sentir a diferença de temperaturas nas duas faces do meu rosto. Um lado tórrido, outro gélido. Sorrio com este exercício de imaginação.

A manhã metamorfoseia-se. À medida que o sol hesitante e tímido,se torna altaneiro e orgulhoso crescendo em altura nos céus, as fachadas anteriormente azuladas tornam-se douradas e a neblina madrugadora desvanece-se.










O barqueiro aproxima-se da principal ghat crematória: Manikarnika.
Olho para Sharma e por instantes transformo-o em Caronte, misturando mitologia grega com a religião Hindu.
Na mitologia grega Caronte é o barqueiro dos cinco rios inferiores do Hades. É ele que transporta as almas mortas do mundo dos vivos para o dos mortos. Aqui no Ganges, Caronte estaria ao serviço de Yama, o Deus da Morte hindu e transportaria as almas do mundo terreno para o mundo espiritual.


Se há lugares que emanam uma força invisível, mas poderosa, palpável e envolvente, esta ghat é um deles. Há piras acesas, outras fumegantes. Em cada uma acesa, há um corpo, em cada uma fumegante, há cinzas de um corpo. Cães, vacas e cabras vagueiam pela ghat.
Alguns dalit estão atentos às piras, outros carregam madeira às costas vinda dos barcos ou das enorme pilhas encostadas às paredes dos edifícios para formar novas piras. O trabalho braçal pertence à casta mais baixa.
É apenas no barco que se pode tirar fotografias. De acordo com a crença hindu tirar fotografias às cremações perturba a viagem das almas para a moksha, a harmonia do espírito com a energia do Cosmos. O barco proporciona a distância segura para que tal não aconteça.




Os remos de Caronte regressam à Meer ghat, a ghat onde tínhamos partido.



Nas ghats de Varanasi


Além de ser a palavra que mais se usa em Varanasi, as ghats são as escadarias que dão acesso ao sagrado, usualmente um lençol de água, como o rio Ganges em Varanasi, ou o Lago Pushkar em Pushkar.
São ligações, pontes, entre a terra e o céu, entre o profano e o sagrado. Por elas faz-se a purificação da alma, todos os seus pecados são absolvidos e o ciclo samsara, a longa sequência de renascimentos, é abreviado.

São elas a essência de Varanasi. Se todos os caminhos vão dar a Roma, aqui tudo, um país inteiro, conflui para Varanasi e para as suas ghats. São quase cem, identificadas nas paredes junto às escadarias ou nos seus edifícios, distribuídas ao longo de cerca de seis quilómetros.
Há uma função, atributos, para algumas delas: cremações, pujas, purificações, onde se pode tomar banho, lavar roupa e até onde os búfalos podem igualmente estar dentro de água.









Se a um viajante apressado em Varanasi - não o sejam!! - tivesse que aconselhar, resumir a cidade a seis ghats essenciais, aquelas onde tudo acontece, aquelas que definem a cidade e aquilo que ela representa, seriam...

A ghat DR Rajendra Prasad, contigua à Dasaswamedh Ghat é uma das principais ghats e que definitivamente merece algum tempo passado nela.
Depois do pôr do sol acontece diariamente a famosa cerimónia Ganga Aarti. Estas cerimónias realizam-se sempre nas margens do rio Ganges. Há séculos que elas são celebradas diariamente.
É uma cerimónia dedicada ao Deus Shiva e à Deusa Ganga. Agradece-se o dia que finalizou e a luz que o iluminou. A cerimónia é liderada pela casta mais alta da sociedade indiana, a Bramane. É coreografada, sincronizada, cheia de cânticos, luz, incenso e plena de simbolismos religiosos e espirituais, realizada por cinco a sete sacerdotes hindus, os pandit, sempre em número ímpar, vestidos com túnicas cor de açafrão.
Chegar cedo, antes do pôr do sol, é fundamental. Não sapenas por um bom lugar ao As escadas enchem-se rapidamente de locais. Outra possibilidade é assistir num barco. Nesta altura todos os barcos do Ganges confluem para esta ghat. São muitos os que assistem, quer locais, quer estrangeiros à cerimónia nas margens do rio sagrado. É uma densa concentração de proas, remos, diyas e oferendas atiradas ao rio.


As ghats crematórias são as mais importantes e conhecidas de entre todas. A maior é a Manikarnika, a mais velha e sagrada ghat de Varanasi, e a secundária, mais pequena, é a Harishchandra. É nestas duas ghats que os corpos são cremados em piras de madeira, libertando a energia da alma da prisão do invólucro físico do corpo, permitindo que esta atinja a harmonia com o universo.
Conta a lenda que a mulher de Shiva, Parvati terá deixado cair o seu brinco - Manikarnika - e Shiva para o encontrar escavou um poço que depois foi cheio com o seu suor.
Caminhando pela Manikarnika encontramos este poço. Ele existe mesmo, com água esverdeada e cheia de lodo.

Há duas ghats que fazem parte do imaginário arquitectónico de Varanasi: a Munshi Ghat e a Dharbang Ghat. Elas são contiguas uma à outra. Imponentes e pitorescas, são ambas que em grande parte tornam Varanasi reconhecível em todo o lado, em todas as revistas, posters e capas de viagem para a Índia.




Varanasi


Varanasi é a Índia. Melhor, é mais que a Índia. Aqui encontramos a espiritualidade que é difícil reconhecer noutros locais deste exótico país.

O que há para fazer em Varanasi? No fundo nada. Não há esplanadas ou sombras. Não se encontra álcool por ser uma cidade sagrada. Não há vendedores ambulantes e o comércio nas ghats é inexistente. É pôr as mãos nos bolsos e arrastar os pés para subir e descer as ghats ou caminhar ao longo delas para observar as rotinas de uma cidade que se dedica à morte. É bom para nos impregnarmos de uma cidade única de rotinas e tradições únicas.
As orações, as purificações, ver os sadhus, os homens santos indianos, sentados nas escadas, iogis nos pilares a fazer ioga, pedintes, bodes a medirem forças, vacas paradas no tempo, cães a passarem à nossa frente, ver as quietas, pardacentas e poluídas águas do Ganges.

E ainda há aquele toque castiço de modernidade, irreverente e não chocante, no meio de toda a variedade faunística da fascinante e sagrada Varanasi, de ouvir um clac clac seco da madeira prensada de um skate rolar no chão das ghats com o previsível baque surdo de um corpo humano, praguejante, a cair no chão que inevitavelmente faz parte da banda sonora de quem, desajeitadamente anda em cima de um.








Varanasi serve para subirmos a Dasaswamedh Ghat e entrarmos na cidade. Perder-nos, e não nos importarmos, nas ruas estreitas, as galis, afagarmos uma vaca, sentir o seu focinho húmido e esponjoso na nossa mão. Parar num restaurante, comer um malai kofta ou algumas samosas, com todo o tempo do mundo. Beber lassies servidas em copos de barro não cozido. litros de água e refrigerantes repletos de açúcar para hidratar do calor que ferra o corpo. Os hidratos de carbono por aqui não é uma preocupação, vamos precisar de todos eles para cruzar as galis e percorrer cidade.

Apanhar um tuk e entrar em cheio no coração da cidade. Sentir o caos a retirar-nos o fôlego, mas a fluirmos com ele, as cores ondulantes, aos quais os nossos olhos não se conseguem prender. comércio por todo o lado, irmos na onda da cidade para não sermos enrolados nela, e percebermos que não nos conseguimos abstrair das buzinas. Em menos de nada, estamos, somos a cidade. Gritamos, berramos, ficamos parados no meio das estradas ou num cruzamento barrados por um tuk, uma motoreta ou um riquexó, tão parados como nós. Viramos a cabeça de um lado para o outro para antecipar o imprevisível e desviar-nos dele.

Voltar para trás é simples. Dispensa-se o tuk, é encontrar e entrar numa gali, ir em frente, descer sempre que possível, no fim há-de existir uma ghat e estamos de volta à Deusa mãe.











A mesma pergunta - O que há para fazer em Varanasi???
E repito a resposta - No fundo, nada.
Mas de imediato acrescento - Mas este nada é imenso. É tudo. E é fascinante.

Este nada, permite descobrir um país inteiro numa única cidade, calcorrear uma das cidades mais fantásticas, mais antigas, coloridas e exóticas do mundo, sermos atropelados pelo seu quotidiano, assistir à intensa vida espiritual de um dos rios mais sagrados e fascinantes do nosso planeta, ligando o que é terreno ao Além, o que é um privilégio.
Este nada que é tudo, é absolutamente intenso e fascinante, marca uma pessoa para a vida.
Estamos numa cidade que lida com dois supremos antagonistas, dois mistérios da nossa existência: a Vida e a Morte.

Não é possível ficar impune, imune ou indiferente a ela. Varanasi, tal como os conceitos universais que há séculos que lida diariamente, provocará sempre uma reacção extremada em nós: ou vamos amá-la, ou vamos odiá-la, atrair-nos fortemente ou provocar uma intensa repulsa.

Atrai-me. E muito.

Comentários

  1. É bom continuar por aqui a viajar contigo. E aprender também.
    A forma como descreves as coisas, as sensações que provocam, as reflexões que fazes, tudo isso cativa quem lê.
    E as imagens, como sempre, complementam muito bem o texto.

    Gostei de ver a tua diya a balouçar no rio. Ela sabe, certamente o caminho que vai seguir:)

    Varanasi, uma cidade onde o sagrado e o profano convivem intensamente e em harmonia. Foi essa a sensação com que fiquei.
    Mais uma vez, grata pela partilha:)

    P.S. Numa das fotos vê-se uma suástica. Sabes dizer o porquê?

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    1. A suástica - é este o seu nome original - há milhares de anos. É um símbolo importante e poderoso e está presente em várias culturas religiões particularmente no hinduísmo e budismo.
      Representa o movimento em torno de um ponto fixo. Representa o sol, o ciclo da vida, o renascimento.

      Carl Sagan teoriza que a suástica teve origem num cometa de duas caudas cujo eixo de rotação é perpendicular à Terra. Isto explicaria o porquê de este símbolo estar geograficamente espalhado.

      O grande problema da suástica foi quando os nazis o demonizaram e retiraram toda a carga positiva que lhe estava atribuída.

      Tenho um buda chinês que tem no seu peito uma suástica.

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  2. Não fazia ideia. Creio que toda a gente associa a suástica ao nazismo.
    Estamos sempre a aprender...:)

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  3. Gostei de viajar até Varanasi.
    Obrigada :))**

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  4. Olá Silvina. :)
    Espero que já tenhas tido o privilégio de lá teres estado. Senão, tens que te fazer à estrada. ;)
    Quando se trata de Varanasi, as palavras são sempre curtas. É uma cidade que se vive com os sentidos e de alma aberta.
    Um beijinho :)

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