Índia - Sadhus, os homens (talvez) sagrados da Índia

São gente estranha e exótica. Os nossos olhos inevitavelmente caiem e demoram-se sobre eles. Como se fossem uma mulher bonita, olhamos para trás para os observarmos melhor.  
Frequentemente andam descalços, vestidos com túnicas de cores exuberantes, ou pelo lado oposto, anda parcamente vestidos com uma tanga, por vezes nus. São seguidores dos deuses Shiva, Vishnu e da deusa Shakti, representante da força feminina primordial, a Grande Deusa Mãe. 

Têm que ser iniciados por gurus e após a iniciação ganham um novo nome renegando o actual. Desapareceram para a sociedade. Têm que morrer socialmente. Existe uma morte e um enterro encenado, simbolizando o desligar de tudo que o vida quotidiana tem para oferecer. Cremam uma figura representativa deles mostrando o abraçar do novo estilo de vida. Para o próprio estado, eles morrem oficialmente.

Há registos deles desde há 1700 aC. Constituem a mais antiga ordem monástica do mundo. 
Chamam-se sadhus (aquele que medita) e os indianos consideram-nos homens santos, sagrados. São homens que abdicaram, desligaram-se da existência material, sensorial, sexual da vida, dedicando-se única e exclusivamente ao mundo espiritual. à meditação, ao ioga e ao estudo dos textos sagrados. 
Ao tornarem-se ascetas, acreditam que a sua alma fica mais limpa, mais pura e assim ascendem ao moksha mais rapidamente. Por isso não são cremados.



Os sadhus sobrevivem daquilo que lhes dão, que lhes oferecem, do dinheiro obtido da sua mendicidade.
Usam tridentes - símbolo dos seguidores de Shiva - as suas túnicas regra geral são brancas ou laranjas - símbolo do fogo purificador e da sabedoria e têm cajados de madeira tosca.
As testas estão pintadas com largas listas verticais de várias cores. Preto, amarelo, branco, laranja.
Enquanto andam, ou estão sentados nas escadas dos templos, chamam a atenção agitando chocalhos, latas com pedras ou pedaços de metal,
Fumam canabis, marijuana, haxixe para estarem em contacto com o além e mais próximos de Shiva. Entre o pôr e o nascer do sol não comem nem bebem.

É gente sem casa, sem poiso que andam de templo em templo, lugar em lugar sem objectivo traçado.






Eles provavelmente representam o máximo da espiritualidade que a Índia nos pode mostrar, oferecer.
Mas nem por isso. Para um estrangeiro é difícil perceber, distinguir, um genuíno de um... superficial, de um falso.
Para os indianos, a maior parte dos que andam nas ruas, apesar de os respeitarem, não os consideram verdadeiramente sadhus. A sua santidade é cada vez mais questionada e posta em causa.
Sob a forma de um pretenso sadhu, um pobre vê as condições de vida melhoradas, é uma forma de sair das castas mais baixas, porque um homem santo não tem casta, um criminoso consegue encontrar uma forma de ficar fora da alçada da justiça, e um incómodo, um peso para as famílias é descartado para as ruas.

A sociedade indiana vêem-nos cada vez mais com desconfiança. Uma comunidade cuja ligação ao materialismo está cada vez mais presente, cada vez mais sustentada e a prosperar pelo turismo, cada vez menos santa e bastante mais oportunista.


O que mais leva as pessoas a visitar, a fazer turismo na Índia é a procura da espiritualidade que lhe está tão associada, tão colada ao seu corpo e os sahdus literalmente corporizam essa espiritualidade.
Esta intensa procura, a massificação do turismo na Índia, é-lhes recompensadora e atractiva. Torna-se uma profissão. Mendigos assanhados fruto dos estrangeiros que lhes dão esmolas, dinheiro a troco de uma bênção, uma bindi na cabeça - uma pinta colorida, desenhada verticalmente no caso dos homens, redonda no caso das mulheres - que dá direito a pagamento, mesmo que só o saibamos depois, ou uma ininteligível, breve e garantidamente vazia oração.




Toda esta dúvida sobre a santidade dos sadhus, o seu materialismo, iria caricaturalmente concretizar-se em Varanasi.
Na cerimónia diária do ganga aarti na ghat Dashashwamedh, um muito barrigudo sadhu pintado de cinza da cabeça aos pés e praticamente nu, estava em cima de um patamar de pedra nas escadarias, bem destacado da multidão e recortado pelo céu negro da noite, estava em pé a filmar a assistência com um telemóvel de flash led bem potente.
E não é difícil ver alguns com relógios.


Os verdadeiros homens santos raramente são vistos. São eremitas. Vivem isolados. Em cavernas, nas montanhas, nas florestas, ou em comunidades fechadas nos ashrams, locais de retiro, de oração e meditação.
Para as populações estes são efectivamente os homens sagrados. São respeitados, procurados e vistos como mediadores, interlocutores privilegiados com os Deuses. Estão associados a actos de magia, feitiços e a protecção contra maus olhados.
A presença destes homens no interior das casas é um sinal, uma bênção divina. Um sinal que ela e os seus proprietários foram abençoados pelos deuses e os seus karmas aliviados.






Dias antes de viajar para Varanasi, em Pushkar, passei algum minutos na presença de um. Tinha um cajado de madeira. Estava vestido com uma única túnica branca e andrajosa. Os seus olhos eram tímidos, mas bondosos, com alguma dificuldade em mantê-los fixados em mim.
Viu-me e lentamente apontou os dedos a uma máquina trituradora de canas de açúcar próximo de nós e pediu-me um sumo. Apenas isto.
Estive sentado lado a lado com ele num banco de madeira improvisado com uma tábua assente em dois bidões de plástico. Não falava uma única palavra de inglês. Olhávamos apenas um para outro.
Ele olhava para mim, sorria e meneava a cabeça, olhava para mim, sorria e meneava a cabeça.

Quando o primeiro sumo acabou, o sadhu em silêncio levantou o dedo indicador direito com um trejeito de olhos, um suave arquear das sobrancelhas.
- Mais um?? Claro que sim. Outro para ti e outro para mim.
Quando acabámos de beber o segundo sumo levantei eu o meu indicador: - Mais outro?
Abanou a cabeça, sorriu para mim fez uns volteios com mão na direcção do meu peito e depois tocou-me na cabeça. Agradeci, fazendo uma vénia de cabeça e tocando com o meu punho fechado no meu peito do lado direito.


Estive para lhe pedir uma fotografia. Sabia que ele ia deixar. Não apenas porque lhe tinha oferecido os sumos, mas porque ele deixaria mesmo.
Mas não. Algo travou o gesto desnecessário. Ao longo da viagem, cruzam-se por nós dezenas de homens santos, estimam-se que existam cerca de quatro milhões espalhados por toda a Índia, mas este sadhu foi o único pelo qual senti carinho e empatia.
Com um pouco de sorte, talvez ele fosse um verdadeiro homem sagrado da Índia. Com uma dose de mais sorte ainda, talvez o meu karma esteja um pouco mais aliviado e a minha alma mais pura.



Comentários

  1. Gostei de ler.
    É pena que existam charlatães em todo o lado e em todos os "ofícios", mas infelizmente o ser humano é assim mesmo. Imperfeito, procurando o seu proveito próprio mesmo que para isso tenha de aldrabar.

    Quanto ao "teu" sadhu, na dúvida sê optimista:))))

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    1. Falando da Índia e da sua realidade social e condições de vida tão duras, que consigo perceber e admitir que se trate mais de uma questão de sobrevivência, do que de charlatanice.
      Sim, quanto ao "meu" sahdu gosto de acreditar que estive com um genuíno, ou pelo menos razoavelmente genuíno ;)

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