Assuão, Egipto - uma dádiva do Nilo

Não consensualmente, o rio Nilo é considerado o maior rio do mundo. 
São cerca de 6900 km que se iniciam no Lago Vitória, até ao delta de Alexandria, no Egipto para ir desaguar no Mar Mediterrâneo. Atravessa dez países: Tanzânia, Uganda, Ruanda, Burundi, República Democrática do Congo, Quénia, Etiópia, Sudão, Sudão do Sul e Egipto.
A nascente primária, localiza-se no Burundi, no rio Kagera. Este é o principal rio que alimenta o Lago Victoria, partilhado pela Tanzânia, Quénia e Uganda. É do lado ugandês deste lago que historicamente e genericamente aceite se situa a nascente do Nilo.
Cerca de quatrocentas e quarenta milhões de pessoas vivem e dependem do maior rio que traça o rosto do nosso planeta.


O Nilo tem algumas curiosidades. Uma é de ser conhecido por fluir de sul para norte. 
A pergunta clássica é porque isto acontece. A resposta é simples e prosaica. A água corre sempre do ponto mais alto para o mais baixo. A inclinação das margens do leito do leito do rio Nilo são mais altas a sul que a norte. 
Desde a sua nascente no Uganda (África oriental) até ao seu terminus no Egipto (norte de África) no delta de Alexandria, a geografia atravessada é sempre descendente.

Antes de ser o grande Nilo, ele tem dois afluentes homónimos com nomes coloridos: o Nilo Azul e o Nilo Branco.
O Nilo Azul nasce no lago Tana na Etiópia. Tem este nome porque durante as monções a sua cor torna-se muito escura devido à enorme quantidade de sedimentos que carrega. O Nilo Branco nasce no Lago Victoria e ganha o seu nome pelo mesmo motivo que o Azul, mas ao contrário deste os sedimentos que transporta são de cor mais clara. 

Tem ainda outra característica: o vento sopra com uma orientação próxima de norte para sul. Quase oposta ao sentido sul-norte das águas do rio. Para navegar nestas condições, contrárias à direcção do vento dominante, tem que ser à bolina. Ir colocando a vela a cerca de 45º relativamente ao vento e navegar aos ziguezagues.
Abdul iria fazer isto incessantemente.






A manhã ainda mal nasceu e o sol já brilha intensamente. Assuão está imersa na neblina matinal. Há pouca gente a circular pelo pontão onde as felucas batem umas nas outras num seco e abafado, chapinhando a água, contrastando com a frieza passividade dos grandes navios de cruzeiros do Nilo. Não vejo gaivotas.
Desço com cuidado os escorregadios degraus do pontão de pedra, ainda húmidos da manhã. Três homens carregam uma das felucas com mantimentos que um núbio vai arrumando no interior do pequeno barco.

Quando tudo está concluído, o núbio de rosto jovem e redondo, de tez escura, bigode bem aparado a apanhar a parte inferior do lábio, faz um sinal com as mãos para me aproximar dele.
Até lá chegar atravesso uma passadeira de várias proas ondulantes, irrequietas, andando para cima e para baixo.

Chama-se Abdul. É simultaneamente o cozinheiro e o homem do leme. É ele quem dirige a gentil feluca que me leva Nilo abaixo.
Tem os olhos escuros presos no horizonte. A grande mão negra, endurecida pelo sol, contrastada pela longa túnica branca que envergava, manobrava o leme num ziguezaguear lento e perpétuo.
Por cima de nós um oleado branco bem esticado protege-nos do sol, e estando descalços, colchões de espuma amaciavam o chão.




Há sempre algo superior a nós quando se viaja num grande rio. Para os egípcios, no rio Nilo, esse algo, é um deus: Hapi. Ele habita nas águas do Nilo. Se fecharmos os olhos, sentimo-lo à nossa volta. Os salpicos da água, os seus aromas, a presença do sol na pele, o som do vento a fazer dardejar a vela triangular ao passar por ela
Quando se navega no Nilo ganha-se uma dimensão extra, não palpável, intangível. Uma dimensão que se alonga quase ao infinito.
Não é a sua extensão, a sua largura, ou o seu caudal debilitado por sucessivas barragens erigidas ao longo do seu imenso percurso. É o tempo. É a sua história. A capacidade de influenciar, de literalmente moldar geograficamente um país que se curva perante o seu serpentear. Fora da influência do Nilo, das suas inundações que depositam sedimentos nas margens que tornam a terra fértil e produtiva, o Egipto é um deserto.

Sem o Nilo, o tempo não existiria. É um abraço de amantes. O rio e o tempo.
O rio é uma ampulheta cujo fluir da água é como a areia que cai eternamente de apenas de um dos lados para o outro, não tendo que a virar.
Sem o Nilo, sem o tempo do Nilo, provavelmente não haveria faraós, não haveria a mitologia egípcia e certamente que não haveria pirâmides.
Por ele, desceram milhares, talvez milhões de blocos de pedras de mais de duas centenas de toneladas que rumavam para o Cairo, para erigir as pirâmides. Como quase tudo na história do Egipto, há uma aura de mistério e de incerteza sobre como estes transportes seriam realizados.


Navegar no Nilo a bordo de uma feluca é uma experiência única e que não se esquece.
Está-se a poucos centímetros acima da água, sente-se o vento quente a agitar os cabelos, vê-se a vela a drapejar, as margens do rio a desfilar com todo o tempo do mundo.

Deitado sobre as esteiras de esponja, estico o braço para as míticas águas e vejo a história e o tempo liquefeitos a passar e a molhar os meus dedos. O fluir de Hapi e do Egipto.
Numa feluca, ao sabor do vento do Nilo e da mão tisnada de Abdul, a única coisa que há a fazer é não fazer nada. Ler um livro como poucas vezes se pode e se consegue ler, dormir sestas enroladas no marulhar da água ao ser afastada para os lados pelo casco do barco. Dormitar, cruzar os braços debaixo da cabeça a olhar o céu profundamente azul, ler um livro, manter uma conversa sem destino final, ou simplesmente encostar os pensamentos ao horizonte, deixá-los lá pousados e perdê-los na distância.




De quando em vez cruzava-nos com os barcos de cruzeiro. Altos, deselegantes, desproporcionados, cheios de janelas, vários andares, ruidosos e muita gente.
Uma montanha incaracterística de aço em movimento. Afastam as águas rudemente e agitam o silêncio. Quando as esteiras de água traçadas por estes seres grotescos, estranhos ao Nilo, cruzavam a feluca, ela agitava-se, protestava. Balouçava de uma forma que claramente a incomodava. David e Golias, a Bela e o Monstro. Que absurda desproporção há entre eles.
Ela respeita o silêncio, respeita o grande rio. É graciosa, frágil, não o perturba. Flui com ele. Ela é ele. Em comum partilham dezenas de séculos de história.

Ao final do dia Abdul aponta a proa às margens e ancoramos. Por volta das seis da tarde o vento amaina. Com a perda do fôlego a vela já não se enfuna.
Deixa de ser possível manobrar a feluca para aproveitar o vento. O ziguezaguear, a bolina que tinha embalado as longas horas dolentes que se tinham derramado no tempo quase ausente, cessa.




Juntamo-nos a outras acostadas na mesma margem. Juntam-se tripulações e passageiros.
Os cozinheiros e homens do leme delas conhecem-se bem.
As gargalhadas soltam-se tão facilmente como as fagulhas da fogueira que aqueceu o comer e depois o café, ou o chá, conforme as escolhas de cada um.

Estou calado e um pouco recuado em relação aos grupos que se juntaram e se divertem. Não lhes pertenço. Estou absorto na fogueira, nas suas brasas, nas águas do rio que escureceram, nas estrelas que surgem uma a uma.

O dançar das chamas bailarinas sempre me fascinaram. Olho-as atentamente.
Por cima de mim, as estrelas tentam chamar a nossa atenção. Apenas eu oiço o seu chamamento silencioso. Olhando para cima, o céu está vestido de um negro profundo cravejado de pequeninas e brilhantes lantejoulas.
Fecho os olhos. Deixo para trás os homens, os passageiros, os risos largos, as conversas desgarradas e os cantos roufenhos. Apenas oiço o crepitar das chamas, os pandeiros arábicos batidos pelos capitães do Nilo, toco no aroma da madeira que arde e oiço as histórias que as constelações me contam.




Acordo cedo, quero assistir ao nascer do sol. Não estou sozinho. Tal como eu há quem assista ao dealbar do dia.
Abdul é um deles, faz as orações da manhã. Na proa e alinhado com o sol ainda rasante parece embrulhado numa manta de fogo.
Quando por sua vez o vento acorda, a embarcação está pronta. A vela triangular está desenrolada e enfunada pelo vento.
Retoma-se a bolina. Não somos os únicos. Uma outra feluca já navegava na macia e azulada neblina da madrugada com a sua vela ainda a espreguiçar-se.


Heródoto, o historiador grego nascido no século V aC, afirmava que o Egipto é uma dádiva do Nilo.
Mas quem navega sobre ele, quem consegue de ouvir o silêncio do vento, a paz das águas e o tempo que se apaga para apenas sobrar o tempo da História, percebe bem que não é só o Egipto recebe a dádiva do Nilo.








Comentários

  1. Gostei imenso do texto e das fotos. Eu sei que sou repetitiva mas a "culpa" é tua:)))))
    Senti-me também eu a viajar no Nilo...

    "Dormitar, cruzar os braços debaixo da cabeça a olhar o céu profundamente azul, ler um livro, manter uma conversa sem destino final, ou simplesmente encostar os pensamentos ao horizonte, deixá-los lá pousados e perdê-los na distância."

    Isto é prosa poética e através dela fico a entender o significado dessas vivências.
    Leio-te com um misto de "inveja" e de gratidão. Inveja por ainda não ter vivido nada disto; gratidão pelas partilhas que aqui fazes.
    É sempre um enorme prazer vir aqui!:)

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