Índia, Udaipur - a cidade branca


São treze horas de comboio entre Nova Deli e Udaipur.
Abri caminho com a mochila à minha frente e sem grandes rodeios tive que empurrar uns quantos indianos para o lado.
Estavam sentados, em pé, ou deitados com os pés descalços pendurados a balouçar nos beliches de cima, estreitando ainda mais o estreito corredor.
Como as vacas nas galis de Nova Deli, estoicamente não se mexiam, impávidos, absolutamente indiferentes ao facto de estarem a bloquear o corredor.
Uma curiosidade nos comboios indianos: há sempre mais passageiros que lugares. Quando chega a altura de dormir, quem está no beliches de baixo arrisca-se fortemente a acordar com alguém a dormir enroscado entre as pernas.

Sinto aquela sensação reconfortante de estar de volta a casa. O cantarolar dos rodados nos carris, a minha mochila estrategicamente colocada no beliche mais alto, bem encostada ao topo. Descalcei-me e deitei-me vestido. 
Apenas usei um lençol que estiquei sobre a napa do beliche. Enrolei o segundo lençol como almofada e afastei para longe de mim o cobertor.
A poucos centímetros de mim, uma ventoinha fixa ao tecto, cheia de pesados rolos de cotão preto pendurados na grelha, funcionava algo ruidosamente competindo com os carris.
Mais tarde ruído suavizar-se-ia a pedido de alguém para baixar a velocidade dela. 

Subi para o beliche com cuidado. Rebeca já dormia há algum tempo.
Rebeca era uma apresentadora de televisão super grávida. Uma muçulmana sunita casada com um muçulmano xiita e que defendia a tese que a religião em geral tinha sido inventada para evitar males maiores entre os povos. Uma versão marxista ligeiramente alterada do ópio do povo. Ia para casa da sogra para ter o filho. A tradição indiana diz que o primeiro filho é acolhido na família do marido. O segundo já é em casa da própria mãe.

Como sempre tive que me encolher no beliche para caber nele.
Acordei familiarmente dorido da posição de dormir. Estava a um par de horas de chegar a Udaipur.



Udaipur


Senti-me como um ovo cozido que passa da água de uma caçarola a ferver para a fresca água corrente de uma torneira.
Ao chegar a Udaipur espalhou-se por mim um forte cansaço, causado pelo abandonar da adrenalina de Deli. A exigente e fervente capital indiana puxa por todos os nossos sentidos impiedosamente.
Nela tudo cheira, tudo mexe, tudo grita, tudo buzina. E tudo isto incessantemente. É competitiva por cada centímetro do quer que seja.

Depois de vários dias em Deli, depois de treze horas quase claustrofóbicas, meio fedorentas e pouco arejadas, contemplar do terraço do hotel onde um pequeno de grupo de mulheres de meia idade tinha aulas de ioga ao som de música new age, um lago amplo de margens bonitas, na atmosfera ainda limpa da manhã, punha-me num estado de quase extático.














O lago chama-se Pichola e a sua história diz que foi em 1362 que foi criado por um comerciante cigano da tribo Benjara.
Para mais facilmente fazer passar os seus animais, este terá construído uma barragem sobre um afluente do rio Kotra dando origem ao lago Pichola. O seu nome tem origem no povoado que foi inundado pelo marajá Udai Singh II quando este ampliou o lago e fundou em 1559 a cidade que viria a ganhar o seu nome: Udaipur. A cidade de Udai.


Chamam-lhe a Veneza da Índia. Desconfio sempre deste tipo de adjectivação. Assumo sempre como sendo um jargão turístico para o turista ocidental. Talvez o seja do ponto de vista indiano e também para quem chega de... Deli.
De longe prefiro quando a caracterizam de Cidade Branca. É menos comercial e mais justo. Vai merecidamente buscar o nome aos edifícios que estão na orla do lago e ao palácio que está no seu centro. O mármore branco impera nesta cidade.

É bonita, possui um certo romantismo, exotismo e considerando as lixeiras abertas nas ruas da capital, é bastante limpa.
É uma cidade vibrante mas não ensandece. A sua atmosfera é mais branda e o seu ritmo mais lento.
Se em Deli o movimento disforme da multidão é tão frenético que se perde a noção do que fazem, de onde vão, ou para onde vão, em Udaipur há uma lógica, um objectivo e um propósito bem definido na forma como os seus habitantes se deslocam nas ruas.
É mais fácil falar com as pessoas, elas têm mais tempo para quem as visita e o assédio mercantilista é claramente diminuto.
Tal como em Pushkar, a pergunta “- De onde vens??” não é disparada a cada passo que damos, a cada esquina contornada, a cada vendedor ambulante abordado.
 "- Entra na minha loja" - com o braço amigavelmente esticado a convidar para o seu interior, é uma frase frequentemente atirada aos estrangeiros mas não insuportavelmente.




Udaipur permite que literalmente se passeie por ela e aprecie a sua vida ao nosso ritmo sem que o da cidade se sobreponha. Contornam-se vacas e bois deitados, parados no tempo e no espaço sem que corramos o risco de ser atropelados. As buzinas dos tuks e das motoretas para o padrão indiano são razoavelmente silenciosas.

O coração da cidade bate mais forte junto à Torre do Relógio. Daqui irradiam pequenas e estreitas ruelas cheias de lojinhas. Relojoaria, têxteis, especiarias, drogarias.
Da Torre do Relógio é um passo para o Subzi Mandi. Um muito rasteiro, colorido e aromático mercado de vegetais, sementes e frutas. Onde para falarmos com as pessoas, cheirarmos, tocarmos o que vendem e comprarmos algo, temos que nos agachar porque a maior parte dos vendedores estão sentados no chão.
Circula-se por carreiros abertos entre cestos e mercadoria colocados no chão. Parar é entupir de imediato a circulação. Esta faz-se com um alçar de pernas, passos cuidadosamente dados para ao lado e muitos "excuse me".









Quer a Torre, quer o Templo Jagdish, são referências um para o outro. A partir de um é fácil chegar ao outro.
O templo Jagdish é um dos poucos templos dedicado a Jagannath (encarnação de Vishnu), o deus da preservação e manutenção do Universo, com a curiosidade de ser representado por uma escultura de pedra preta.
Uma inclinada escadaria de mármore branco ladeada no topo por dois imponentes elefantes marcam a entrada do templo. Há sempre devotos no seu interior acanhado e com eles estão os cânticos e a percussão. Quem quiser (e pagar) é abençoado com água do Ganges.

Uma volta ao edifício, manda a etiqueta seja dada no sentido dos ponteiros do relógio, e percebe-se bem o esforço colocado neste templo. Inúmeros elefantes, músicos e cavaleiros estão delicadamente talhados no mármore.
Um excelente sítio, e pessoalmente o mais interessante da cidade para se encontrar sahdus e vendedoras de flores nas escadarias, pedintes por debaixo dos elefantes da entrada e passar uns minutos a apreciar o decorrer da vida de Udaipur na praça Jagdish Chowk, sentado no degrau mais alto.














O City Palace, muito próximo do Jagdish Temple, a seguir ao Lago Pichola, é a segunda pérola da cidade. Um imenso complexo de delicada arquitectura constituído por onze edifícios construídos ao longo de mais de quatrocentos anos pelos vários marajás que nele viveram.
Inicialmente construído em pleno século XVI (1559) a mando do fundador da cidade, o marajá Udai Singh II, ele representa a história do próprio estado do Rajastão.

Por cada marajá que passava por este palácio, maior e mais labiríntico este se tornava. Cada um deixava o seu cunho, a marca pessoal no palácio.
São quase duas horas entre salas, terraços, janelas e varandas. Vistas panorâmicas sobre a cidade e sobre o lago, jardins e fontes. Objectos do quotidiano, pinturas nas paredes e nos tectos, quadros, esculturas, armas e armaduras.
Para quem não se importar com muita gente, ruidosos grupos organizados com tradutores e for amante de história e de arte, o City Palace é um lugar de eleição.















Udaipur está rodeada de colinas, vários lagos (Pichola, Fateh Sagar, Udai Sagar) e jardins.
Fora da influência da cidade, o trânsito diminui consideravelmente, a paisagem torna-se verde, fresca. Ganha um aspecto rural, as estradas estão ladeadas por muros revestidos a verde e sente-se a presença do silêncio e do vento a bater nas folhas das árvores.


No topo da colina Machla Hill, na periferia da cidade, está o  Karni Mata Temple.
Segundo a religião hindu, Karni Mata é o avatar, a reencarnação da deusa Durga, a Grande Mãe.
Representa o lado feminino da energia criadora cósmica. o shakti. Por sua vez Durga representa Parvati, a mulher do poderoso deus Shiva e a mãe de Ganesha.

Diz  a lenda que quando um dos filhos de um membro da sua tribo, a Charan, morreu, ela tentou interceder junto de Yama, o deus da morte, que o trouxesse de volta à vida e à sua tribo, Yama rejeitou o seu pedido afirmando que a alma já tinha reencarnado. Aqui existem duas variantes.

Uma, conta que Yama acabou por aceitar o seu pedido, mas impondo a condição que reencarnaria temporariamente sob a forma de um rato até reencarnar de nova na sua família.
A outra versão reclama que Karni Mata furiosa por Yama não ter acedido ao seu pedido, declarou que todos os descendentes Charan ao morrer sairiam fora da influência de Yama, encarnando temporariamente sob a forma de um rato antes de regressarem à sua tribo.
Todos os templos dedicados a Karni Mata são lugares de protecção e adoração de ratos. Não os vi neste templo, mas não deixa de ser uma das muitas e muitas curiosas lendas que povoam a religião hindu.


Chamar um tuk tuk e numa viagem alucinante e atafulhada de ziguezagues, como todas as que envolvam tuks na Índia, chega-se à base da Machla Hill.
Ou subindo quase um milhar de degraus, ou através de um teleférico que nos leva lá acima, onde decorada com um pedaço abandonado de sari vermelho e dourado, pendurado num ramo de uma qualquer árvore, a cidade deposita-se na distância a nossos pés.








Não é verdadeiramente a Veneza da Índia, mas a vida nas ruas, os mercados, as pessoas, a calma dos lagos e das fachadas brancas, dão-lhe uma serenidade e um encanto fora do vulgar para quem viaja pelo norte da Índia.
Udaipur exala um suave aroma do Incredible Índia.



Comentários

  1. Esvoacei até aqui...em boa hora! Lá me vou repetir mas gostei bastante do texto e das fotos. Foi só uma primeira leitura, logo pela fresca venho até aqui de novo. Pouco num ramo e fico a observar tudo em silêncio:))))))

    "Udaipur está rodeada de colinas, vários lagos (Pichola, Fateh Sagar, Udai Sagar) e jardins.
    Fora da influência da cidade, o trânsito diminui consideravelmente, a paisagem torna-se verde, fresca. Ganha um aspecto rural e sente-se a presença do silêncio e do vento a bater nas folhas das árvores."

    Parece que estou a sentir e saborear...

    Grata, sempre, por estas partilhas. Beijinho

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