Pushkar, Índia - Brama, a mãe de Hanuman e o atraso de Savitri

O comboio chegou por volta das dez horas da noite. Cá fora, no largo da estação de Ajmer, sentia o stress a correr pelo meu rosto. Convenci-me que nos minutos iria parar a uma prisão indiana.
Os indianos são extraordinariamente invasivos e inquietantes. Num país com um par de centenas de milhões acima dos mil milhões de habitantes, o conceito de espaço privado é forçosamente reduzido. Por vezes a um par de metros, outras a poucos centímetros. E conseguem ser desconcertantemente curiosos. As duas circunstâncias juntas põem-me com os cabelos em pé. 

De olhar fixo, imóvel, um indiano esteve longos minutos a olhar para mim sentado numa vespa com o pés apoiados no chão. Do lado direito, quatro rapazes de braços dados entre si, estavam desnecessariamente muito próximo das mochilas e com os olhares presos nelas. 
À esquerda, um grupo de mulheres e raparigas foram-se aproximando cada vez mais. 
Três tuks pararam com os guiadores quase a tocar em duas raparigas que viajam comigo. Os condutores ficaram fora deles de braços cruzados de olhos fixos nelas.
A sensação de clausura, de claustrofobia e de ameaça, que não existia, tornava-se insuportável. Há quase quinze minutos que aquilo durava.
Se alguém se aproximasse e me tocasse, nas pessoas que estavam comigo ou até nas mochilas, iria perder a cabeça. 

Passados largos minutos de terem chegado, os condutores dos tuks aproximam-se e dizem para por as mochilas lá dentro. Eram eles que iam levar o grupo para Pushkar.
Rafael em tom divertido sussurra ao meu ouvido:
- Pedro, eles são assim mesmo.



a cidade de Brama


Pushkar é uma cidade de peregrinações, algo psicadélica com um travo hippie e bastante magnética. Muito boa onda e cheia de energia positiva. Tem mais trânsito de vacas que de tuks ou bicicletas. Está cheia de estrangeiros e pululante de sahdus.

Dedicada a Brama, ela é uma das cidades mais sagradas do hinduísmo na Índia. Encontra-se aqui um dos muitos poucos templos no mundo dedicado ao deus Brama, o deus da criação. É um do três deuses que pertencem à divina trindade hindu, a Trimurti: Brama (o criador), Vishnu (o preservador) e Shiva (o destruidor).
À semelhança dos muçulmanos que deverão visitar, pelo menos uma vez na vida, Meca para orarem a Alá, também os hindus têm que visitar Pushkar para orar e adorar no templo de Brama.

A lenda que dá origem ao seu nome é bem conhecida. Ela escreve que o lago surgiu quando uma pétala de uma flor de lotus, a arma de Brama, caiu quando atingiu o demónio Vajra Nabha, matando-o quando este ameaçava as pessoas e o filhos de Brama.
O nome Pushkar - push (flor) + kar (mão) - reflecte esse acto em si mesmo.
Outra lenda, elas são sempre muitas, menciona que Brama libertou um cisne branco com uma flor de lotus no bico. Onde o sítio onde este deixasse cair a flor, chamar-se-ia Pushkar.



Tal como Udaipur, ela é um rendilhado de ruas e ruelas. 
A rua principal, a Main Market Road, segue o contorno do lago. Dela partem várias ghats para o lago sagrado. 
É um autêntico bazar e uma loja de conveniência: roupas, turbantes e saris, tudo rajasthani. Mais pulseiras. sandálias, malas, livros, estátuas de deuses, carimbos, paus de incenso.
O sítio ideal para atafulhar mochilas com pequenas coisas que tilintam, brilham e tingidas de cores quase inimagináveis. Há quem compre umas dezenas de artigos para depois vender nos seus países.

É o que se quiser e o que se precisar, com o bónus garantido de uma longa maratona a regatear preços sob o risco de se pagar mais de duas ou três vezes mais do que um preço razoavelmente justo. Com um pouco de sorte as lojas têm pendurado cá fora um pedaço de papel ou cartão amassado a afirmar taxativamente: - Fixed Price!
Ou queres, ou não queres. Sem discussão.




Alguns cafés e restaurantes professam o vegetarianismo, as suas vantagens e defendem o ioga.
O esoterismo, a visão holística de corpo e espírito é facilmente visível em Pushkar.
Não se encontra carne, peixe ou até ovos. Apenas produtos lácteos. Maioritariamente a bebida nacional indiana, as lassis. Bebidas feitas com iogurte natural à qual podem ou não ser adicionados pedaços ou sumos de fruta.

Para os mais aventureiros existe a "special lassi" ou a "bhang lassi". Feita da mesma maneira que as normais mas em vez de fruta, é adicionado... haxixe, marijuana. Ganha uma típica cor verde a fazer lembrar absinto. Bem feita dá uma pedrada garantida. Desde as mais fracas, as "light lassi" que podem dar uma ligeira sonolência ou até nada, até às que são a sério. Mais espessas e sente-se a erva macerada a passar por entre os dentes, que garantidamente dão uma valente pedrada, pondo o mundo do avesso, muito deformado aliado à incapacidade de se articular frases que façam sentido por muito que nós desejemos ou tentemos.

A experiência é tentadora e fazendo parte da cultura indiana... em Roma sê romano.
Manda o bom senso que se experimente as light para ver como é. Preferivelmente acompanhado, os comportamentos podem mudar, os passos tornam-se trôpegos e vacilantes, e garantidamente sem nada de valor nas mãos. O risco de sermos roubados ou de perdermos algo numa esquina qualquer é considerável.
Não se vê descaradamente a serem vendidas na rua. Na Main Market Road perguntam discretamente a um estrangeiro que passe, mas qualquer sítio que venda lassis, há special lassis certamente.
E vêem decoradas com a respectiva folhinha.



a mãe de Hanuman


Os macacos langur de face preta fazem sentir a sua presença em todo o lado. 
Um bando deles perseguia outro estrondosamente nos telhados, saltando por entre árvores e postes eléctricos. Uma dezena de rápidas e ágeis manchas cinzentas de longas caudas e braços destacavam-se, cruzando os ares de um lado para o outro. Provavelmente uma questão de território, de fêmeas ou de alguma mochila roubada a uma turista mais descontraída. O instinto diz-lhes que as mulheres são menos intimidantes que os homens.
A crias agarravam-se como podiam à pelagem das mães, os machos mostravam os dentes. 
O barulho era imenso, principalmente quando passavam pelos telhados de zinco. A gritaria fazia-se ouvir em todo o lado. A rua parou curiosa com os olhos vidrados no alto e cabeças a girar de um lado para o outro. Demorou vários minutos até as hordas se acalmarem.

São indiferentes a tudo que se passa à sua volta. São alimentados pelos locais, catam as vacas, andam por cimas dos tuk tuk e vão roubando vegetais aos vendedores mais permissivos e compreensivos. A cidade tornou-se no seu habitat natural e as disputas pelos territórios e pelas fêmeas são frequentes. 

Olhando com atenção vêm-se macacos amputados dos seus membros. Os curto circuitos nos postes eléctricos são os seus grandes inimigos. Quando o azar acontece são levados para centros clínicos para serem tratados.





Para os indianos os macacos são seres sagrados. O épico hindu Ramayana relata que o Deus Shiva terá encarnado num macaco, o poderoso Deus macaco Hanuman,
Noutra versão ele é o filho de Shiva e Parvati, numa altura em foram para a floresta transformados em macacos para se entregarem a jogos amorosos. Parvati engravidou. Perante o embaraço de Shiva este fez com que o bebé de Parvati fosse transferido para o ventre da apsara Anjana que há muito rezava aos deuses para que tivesse um filho e que esta teria sido a verdadeira mãe de Hanuman.

Independentemente das narrativas, Hanuman é sempre descrito como um fiel e leal discípulo de Rama, este por sua vez é uma das mais poderosas reencarnações de Vishnu, o deus da Preservação.

A Hanuman são atribuídos vários poderes concedidos por deuses hindus. Nenhuma arma o consegue ferir, não sente o medo, é extremamente forte, tem o poder de variar o seu tamanho e consegue cruzar os oceanos. É um deus protector, afasta o mau karma e confere perseverança para ultrapassar os problemas. Tem o dom da sabedoria, da felicidade e não conhecerá a morte apenas quando este desejar. 
A reforçar a ideia de imortalidade conta-se que o deus Macaco, numa demonstração de fidelidade a Rama declarou que enquanto o nome de Rama fosse mencionado, venerado e admirado pelos homens, ele estaria presente na terra. Por isso, para muitos hindus, Hanuman ainda hoje está vivo.

Na manhã deste dia tinha subitamente acordado no hostel com sinos a tocar e intensos barulhos em chapas metálicas. Alguém andava a atirar pesadas pedras para cima de chapas. Entre o dormir e o tentar não acordar de vez, não consegui perceber porque alguém iria fazer isso. Agora conheço bem os culpados. Falta perceber a questão do bater dos sinos.











Savitri atrasou-se


O épico hindu Maharabata, escreve que no dia em que Brama ia casar com Savitri e participar num cerimonial de casamento, que teria que decorrer num preciso momento por este ser muito auspicioso, esta ter-se-á atrasado por causa do vestido.
Brama vendo que corria o risco de perder esse momento procurou à sua volta uma mulher que estivesse por casar. Apenas encontrou Gaytri. Uma mulher de casta mais baixa possível: uma intocável.
Para que pudesse casar com o Deus, a intocável teve que ser purificada passando pela boca de uma vaca e saindo depois pelo outro lado. O nome de Gaytri - Gay, boca da vaca e tri, que passou por - tem origem neste ritual de purificação.

Quando Savitri chegou ficou furiosa. Casou igualmente com outro homem e amaldiçoou Brama declarando que ele só seria adorado em Pushkar. Para apaziguar a sua fúria, o deus da criação deu-lhe o templo na colina mais alta de Pushkar enquanto que o templo de Gayitri ficaria na colina mais baixa. Dessa maneira Savitri seria sempre adorada em primeiro lugar. Algo que ainda acontece hoje.

O Templo de Savitri tem uma cúpula de cor vermelha e situa-se no alto da colina Ratnagiri, a tal que é mais alta. O nascer do sol e o pôr do sol são duas cerejas a provar no topo de um bolo que se chama Pushkar.
Foi a segunda cereja a escolhida para o templo. A primeira ficaria para o lago, na manhã seguinte.


É preciso quase uma hora para subir pouco menos de 600 degraus irregulares, partidos e desafiadores e um fôlego de atleta. O teleférico não funciona. Uns quantos homens andavam lá em cima a trabalhar nele. Muito próximo do último lanço de escadas há uma varanda com vista sobre Pushkar.

Faço uma pausa para recuperar o fôlego, antes de me fazer ao último lanço de escadas. Fecho os olhos e ofereço o rosto ao vento. Sinto o seu afagar gentilmente frio a secar as gotas de suor que por ele rolam.







O templo está fechado. Passo por ele e sento-me confortavelmente por entre as rochas. Fico encostado a uma, à espera que ele desça no horizonte. 
Sinto a temperatura da rocha a aquecer as costas e a cabeça. A terra está macia por alguma erva que cresce ali. Há um certa humidade nela que passa para mim. À minha frente o horizonte está aberto, desimpedido. É vasto e longínquo.


Há sempre um esvaziar da minha alma na contemplação de um pôr do sol. Estabelece-se uma calma pacificadora invulgar nela. O dia está vencido, cumpriu-se, completou-se. Nestes momentos sorrio com carinho para o sol. É inofensivo a sua força está diminuída. Está cansado e frágil. Com ele e a seguir a ele, vêm os céus coloridos, as estrelas que brilham depois de estes estarem escuros.

Estou num país hindu, mas penso nos egípcios. No antigo Egipto o escaravelho é um animal sagrado. É ele que faz rolar com as suas patas o sol, que o esconde no horizonte. Na manhã seguinte é um escaravelho renascido, jovem, que o retira do horizonte e dá origem a outro dia.
Sem qualquer tipo de pressa, o sol estava mais interessado em observar-nos do que em por-se.




Descer é arriscado. A escuridão e as sombras fazem nivelar os degraus parecendo todos iguais, planos, alinhados entre si.
Há quem use frontais, há quem use os leds dos telemóveis e há quem tropece. Há joelhos e canelas esfolados e oiço alguém a praguejar.
Se subir cansa, descer mói.

Na varanda, a paisagem transformou-se radicalmente. Agora há um profundo azul escuro no céu. Vê-se na perfeição a cidade a abraçar o Lago. Uma brilhante pedra preciosa azul claro, pensei num topázio, incrustada numa paisagem de azuis, castanhos tímidos e verdes mais adivinhados que reais, iluminado por uma quadratura de luzes que o destaca na paisagem.




Entre dois lanços de escadas, cruzo-me de novo com a mesma mãe que tinha encontrado ao subir. Embala um bebé num berço improvisado, enquanto duas crianças estão à sua volta. Assim que nos vêm recomeçam a dançar. Os três voltam a pedir dinheiro. Estava na esperança de não os encontrar.
Ao vê-los, voltei a ser assolado pela tristeza e raiva contra o mundo. Não quanto ao acto da mendicidade em si, mas pela exploração das crianças.
As crianças não podem, não devem, perder desta maneira, ou qualquer outra, a sua ingenuidade e pureza. Resisto, tal como na subida, à tentação de dar dinheiro. A esmola é uma forma de fomentar aquela prática. Infelizmente não tenho nada de comer que lhes possa dar.
Com os olhos atentos aos degraus, digo para mim próprio:
- Isto não é justo. Não é de todo justo. Mas o mundo também não é justo.



Nesta noite, deitado num banco a lembrar o império romano no piso térreo do hostel, uma special lassi bebida numa discoteca, escura, de escadas de madeira a ranger e servida na cozinha por empregados a lavar louça, far-me-ia sentir dedos a passarem pelas mãos e pelo rosto. Fechei os olhos e imaginei o lago como um indistinto negro lençol de veludo a cair sobre mim, Senti claramente a sua suavidade e o calor que proporcionava.

Na madrugada seguinte levanto-me cedo, ainda atordoado da noite anterior, para o nascer do sol nas ghats do lago Pushkar.
Os langur de face preta já andavam aos pulos nas chapas de zinco onduladas adjacentes ao lago e as escadarias ainda tinham pouca gente.
As regras e o respeito pelo lago sagrado obriga-me a tirar meias e sapatos para andar nas famosas cinquenta e duas ghats. O contacto com a pedra é macio e ela não está fria. Gosto da sensação e a sujidade do piso não me incomoda por aí além.
Caminha-se sem pressa por entre o silêncio. O Sol ainda não se faz anunciar, mas a manhã já apresenta aquele azulado madrugador nos céus que inunda toda a atmosfera da mesma cor. As ghats mantêm-se vazias.

Apenas um homem de túnica branca caminhava lentamente com um cão atrás de si.







Sinos e campainhas começam a tocar e as primeiras pessoas começam a chegar às ghats para os banhos e pujas. A segunda parte do meu acordar precoce na primeira manhã estava agora explicada.
O perímetro do lago fica completo poucos minutos depois do sol nascer.
Não gosto tanto de nascer do sol como de um pôr do sol. O nascer do sol é breve, faiscante, mais agressivo, menos poético. Carece de elegância. Se o pôr do sol acalma, o nascer do sol inculca urgência, pressa, passos estugados.

Alberto Caeiro na sua bucólica filosofia pragmática afirmava: "Um dia de chuva é tão belo como um dia de sol. Ambos existem; cada um como é".
Deve ser a única altura em que declaradamente não concordo com heterónimo preferido de Fernando Pessoa. E quando transponho esta frase, para contrapor o nascer ao pôr do sol, chego à mesma conclusão: quer um dia de chuva, quer um pôr do sol são bem mais belos que os seus opostos.

As ghats já estão mais movimentadas e o quotidiano recomeça num novo dia.
Dirijo-me para a Main Road Street para um pequeno-almoço holístico, pensando:
- O escaravelho egípcio cumpriu bem a sua tarefa solar diária. Escondeu o sol ontem, fez nascer as estrelas à noite e hoje trouxe o disco solar de novo à superfície, oferecendo-o mais uma vez aos homens.








Comentários