Peru, Lares Trail - o lado B do Inca Trail (dia dois)

Lico tinha-me dito que as comunidades andinas têm uma vida absurdamente dura.

Sete milhões de peruanos vivem nos andes, a altitudes que variam entre os três mil e os cinco mil metros. Devido à alta altitude, ao frio, ao tempo seco que caracteriza o clima andino e às grandes variações de temperatura, aliada à impossibilidade de irrigação, a agricultura é muito pobre e limitada. Quase exclusivamente batata.
Toda esta população vive no limiar da pobreza e sofre de uma desnutrição generalizada.

Em Huacawasi, nos 3800m, quando o Inverno é duro, os animais frequentemente morrem com o frio. Mas o chocante é que as crianças também. Num Inverno rigoroso podem morrer duas, três crianças. As mais novas, as mais doentes.

Não há médicos em permanência. Os médicos vêm cá acima uma vez por mês. Tal como os professores, eles são de Cusco ou até de Lima. Quando são necessários cuidados médicos, os andinos recorrem aos curandeiros.
Têm mais sorte com os professores. Estes dão aulas durante uma parte da semana, habitualmente de segunda a quinta. São pagos pelo governo. Daí a maior parte dos presentes que trazíamos serem material escolar. O objectivo é mantê-los e incentivar a sua ida à escola.

Via as crianças a brincar. Sentia a sola grossa das minhas botas de montanha a isolar-me do chão áspero e frio. Já tinha trocado as minhas meias finas por um par mais grosso. Era com estas que iria dormir. Mas entre as crianças e o chão, nada ou quase nada as separava. Andavam descalços, com umas sandálias finíssimas de desgastadas que estavam e a roupa estava esfiapada, rota. Em suas casas é uma fogueira e as peles dos animais que pastoreiam que os aquecem.

Frequentemente perguntam-me porque vou para estes países, porque vejo estas situações de pobreza tão grande. Respondo sempre que todas as vezes que viajo até esses países, faço a diferença. Posso oferecer coisas que comprei para eles e por vezes, até deixo as minhas coisas (aqui deixei luvas e meias). E pago a hospitalidade deles, que por sua vez, com esse dinheiro, vão poder comprar o que precisam. 

Ao participar na vida deles, deixo algo de mim neles, e eles deixam algo deles em mim. Esta troca, na qual saio a ganhar, não tem preço. 
É por isto que não me importo de saber que no frio invernal dos Andes, morrem crianças. Ao estar lá, talvez menos uma, menos duas vidas venham sucumbir à dureza andina. 
"Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro."





Apresentações

A manhã brilhava. Estava fresca e limpa. O sol matinal projectava sombras alongadas por todo o lado. E a aldeia já há algum tempo que tinha o dia a dia a funcionar.
Estava com dificuldade em concentrar-me no que estava a ser dito.
Os meus olhos saltavam de um lado para o outro a ver o que se passava à minha volta.

À minha frente numa casa com a fachada de um rosa muito desmaiado e já iluminada pelo sol, um pequeno gato brincava com a corda pendurada na porta enquanto outro sentado na janela olhava para ele com complacência.
Ao meu lado esquerdo, uma casa de banho feita de pedra empilhada, com uma porta de madeira que era uma janela, ou, talvez uma janela de madeira que funcionava como porta. interpunha-se a uma impressiva face inclinada de uma montanha próxima lavrada com um verde muito suave.
Sobre a minha direita, uma jovem estava de pé muito próximo das tendas desmontadas, apoiada num carrinho de mão azul encostado a um muro feito de pedras empilhadas. Um cão alheio ao que se passava connosco estava com ela.








Parte da aldeia estava disposta à nossa frente em semi-circulo a ouvir-nos e a fazer-nos perguntas.
- Chamo-me Catherine e venho da Austrália. Sou radiologista. É a primeira vez que estou no Peru e vim cá para visitar Machu Picchu.
Eu e a francesa Marie, fizemos o mesmo. A Marie era programadora do famoso jogo de computador Assassin's Creed. Pertencia a uma equipa de cerca de quinhentas (!!!) pessoas que espalhadas por vários países trabalhavam no software. Vivia no Canadá, em Montreal. E todos nós estávamos no Peru pela primeira vez e todos estávamos pelos mesmos motivos: Machu Picchu.

Os habitantes de Huacawasi são curiosos relativamente a quem os visita e acampa ao redor de suas casas e gostam de saber coisas sobre os seus países.
Cada um de nós representa uma oportunidade, uma janela que se abre para o mundo fora dos Andes:
Há montanhas, há praia? Neva? O que se come em nossa casa? Usamos chapéus como eles? Já visitámos outros países? O que pensamos do Peru?
É a curiosidade de quem vive na espinha dorsal da América do Sul e quer saber mais daquilo que se passa para além do horizonte altaneiro dos Andes.


O trekking recomeçava. Hoje eram quase sete a oito horas de caminhada até chegar a Mantanay, o destino final deste segundo dia no Lares Trail.
A altitude ia fazer-se sentir a caminho do ponto mais alto da caminhada, O desnível percorrido ia rondar os 800m, razoavelmente inclinados e atingidos com alguma rapidez. Hoje iríamos estar no ponto mais alto dos três dias da caminhada, aproximadamente a 4600 metros.

Andrés, um miúdo com pouco mais de dez anos, trajado a rigor com vestes vermelhas, vinha connosco. Com ele vinha um cavalo baixote, a fazer lembrar os cavalos mongóis, de pêlo e crina muito bonita de cor amarelada, Se houvesse algum azar, seria o Ruço a nossa ambulância.
Era a iniciação do Andrés neste percurso. Futuramente será a vez dele a fazer a logística dos caminhantes que andavam no Lares Trail.








Alguns lamas, alpacas e guanacos iam pastando aqui e ali próximo da aldeia. Crianças passam por nós no trilho que que começava por trás das toscas casas de Huacawasi.
Um grupo de quatro homens com utensílios às costas subia a montanha para ir amanhar a terra, tinham parado para dar dois dedos de conversa com Lico.

Muito poucos sítios conseguem por-me em contacto com os Deuses (tenho um lado pagão muito forte), dar-me uma leveza física e espiritual como as montanhas. São profundamente catárticas.
São o meu retiro espiritual, o meu confessionário, o meu quintal e o meu recreio. Torno-me sempre uma criança. Apetece-me correr desabridamente para a frente e para trás como um cão numa praia, andar fora dos trilhos, saltar de rocha em rocha como um cabrito montês. planar como um condor no isolamento dos céus, dos vales, dos picos, a olhar a paisagem em lá em baixo formada por antigos glaciares.

O céu nublado fazia o sol projectar sombras no vale. Aceleradas pelo vento elas caminhavam rapidamente sobre ele seguindo fielmente o seu contorno.
Um rápido jogo de apanhada entre luzes e sombras, fazia mudar a aleatoriamente a intensidade e a direcção das cores do vale.






A Dança do Grande Corvo

Cheguei a Ipsay Qasa Pass a correr.
"That's show off, that's show off" - tentava gritar a australiana.
Não era de todo, mas era mesmo o que parecia. Um puto nunca se cansa de brincar no seu recreio por muito cansado que esteja.
Um pequeno altar feito de pedras empilhadas umas sobre as outras, honrando os deuses marcava o ponto mais alto do trekking. Procurei três pedras à minha volta e acrescentei-as ao altar. Gosto de ter a protecção dos Deuses das montanhas, de os ter bem próximos de mim.

Lico, Catherine, Marie e Andrés com o Ruço estavam uns cinquenta metros atrás de mim.

Do alto dos 4600m tinha o azul carregado da lagoa Aruraycocha cravado numa paisagem quase totalmente fechada pelas montanhas.
A rodear-me tinha o céu azul e branco, manchado com cinza denso de algumas nuvens mais pesadas, os castanhos e ocres da cascalheira, os cinzentos escuros das rochas que texturavam as encostas da montanha, o vento frio que batia forte na minha cara e que arrefecia o meu corpo, particularmente os dedos das minhas mãos que estavam bem metidos no fundo dos bolsos das calças.
De olhos fechados, inspiro tudo aquilo de uma só vez. Quero levar para dentro de mim este silêncio colorido, antes que as vozes de quem está por chegar, perturbem esta visão como quem atira pedras para um lago partindo o espelho que nele repousa.




Poucos passos à minha frente está a cascalheira. Um trilho mal rasgado e parcialmente obstruído por rochas e calhaus de cores diferentes que tinham rolado do topo, serpenteia por ela em ziguezagues apertados.
Pela minha mente passava a Dança do Grande Corvo.

Nas cascalheiras do Atlas marroquino, do Kilimanjaro tanzaniano e da Peña Ubiña espanhola tinha dançado com o Grande Corvo. No deserto de Gobi e no deserto do Namibe tinha descido dunas a voar como o Imponente Corvo. Na Serra da Estrela, nos Alpes suíços e franceses, nos cerros argentinos e chilenos da Patagónia, tinha descido corredores cheios de neve na companhia do espírito do Belo Corvo.
Agora era a vez dos Andes peruanos. Se não fizesse a Dança do Grande Corvo, ir-me-ia arrepender para o resto da minha vida.

A técnica é simples: enterrar os calcanhares profundamente na neve, na areia, no cascalho, pés ligeiramente abertos para o lado, fechar os olhos, convencer-nos que tudo vai correr bem, inspirarmos fundo, estender as nossas asas, batê-las com determinação, grasnar convictamente, avançar para a cascalheira sem medo e... só parar lá em baixo.
Até lá é esperar que tudo corra pelo melhor. Tropeçar e cair nestas condições causa muitos estragos, principalmente nas pernas e braços.
É o romper do equilíbrio instável das pequenas pedras em cima umas das outras que nos leva, nos transporta no meio de um ruído a balançar entre o surdo e o crepitante, até ao fundo das cascatas de pedras.

Cá em baixo, abrigado vento do frio dos 4600m, ofegante, com um sorriso do tamanho dos Andes, olhei para a cascalheira poeirenta e adivinhei as figuras das minhas colegas de caminhada e do Lico, ainda no alto da cascalheira a descerem calmamente. Calculei que iriam precisar de pelo menos meia-hora para a descer.
O privilégio de voltar a ter a paisagem envolvente, a imponência da face do Ipsay Qasa Pass, a lagoa, o seu brilho e a sua placidez só para mim, ir-se-ia repetir.







Mantanay

Depois da descida, o trilho continua seguindo o contorno da montanha e do lago. Até Mantanay a caminhada é suave e calma. A altitude desce acompanhando esse ritmo.

Uma paragem para um almoço rápido e frugal na lagoa Ipsaycocha Lake. Uma lagoa lamacenta e algo pantanosa. É difícil perceber os seus contornos. As suas margens não estão bem definidas.
Caminho entre tufos de ervas que sobressaem no lago. O que pensava era caminho sólido, esconde uma almofada de água e lama que cede perante o meu peso. Uma das minhas botas fica presa na lama e não consigo soltá-la. Tenho que me descalçar para escavar à volta da bota e soltá-la. A diferença de temperatura entre os dois pés é desconfortável.

Tinha partido a 3800, chegado aos 4600 e agora em Mantanay estava a 3600m. Sente-se bem a diferença de altitude no corpo. Estava invulgarmente activo e não parava de andar de um lado para o outro. Baixar 1200 metros de altitude em vinte e quatro horas provoca um vigor físico fora do normal.
Quando em alta altitude o corpo faz aumentar o número de glóbulos vermelhos para compensar a rarefacção do oxigénio. Quando a altitude diminui, a rarefacção também diminui, mas enquanto o corpo não se ajusta, reduzindo a quantidade de glóbulos vermelhos, estes mantêm-se em alta. A consequência é estarmos naturalmente "dopados".  A disponibilidade física é muito alta.

Mais uma vez, as tendas estavam já preparadas com as mochilas à porta. Jose aparece com chá de coca quente, pipocas e amendoins torrados.

O acampamento estava montado num circo. Um pequeno vale arredondado encaixado nas montanhas. Um estreito ribeiro de águas cristalinas e bem frias cantarolava baixinho pela periferia do acampamento. Para além dele, enquanto as encostas das montanhas não eram excessivamente inclinadas, estavam algumas árvores e arbustos. Os cavalos bebiam água e andavam por aquele bosque. Ouvia-os facilmente a pisar as folhas e a resfolegar.
Num canto do circo, junto ao ribeiro, havia bancos toscos feitos de troncos de árvores com os veios visíveis e os nós da madeira suavizados. Junto a eles, uma mesa construída da mesma madeira e da mesma maneira. Andrés falava com o Ruço enquanto acariciava o focinho.

Que fantástica sensação de paz, calma e isolamento. Tudo está no seu lugar. O mundo gira suavemente, sem solavancos ou soluços.



Comentários

  1. Um dos relatos de que mais gostei. Fazes uma descrição fabulosa, das paisagens, das sensações que vais vivenciando, senti-me mesmo a viajar contigo. Isto não é uma força de expressão. À medida que vou lendo vou-me sentindo como fazendo parte da "caravana". A forma como descreves tudo o que observas à tua volta, as fotos, tudo contribui para essa minha sensação. Também é bom viajar sem sair do ludgar:)))

    "Frequentemente perguntam-me porque vou para estes países, porque vejo estas situações de pobreza tão grande. Respondo sempre que todas as vezes que viajo até esses países, faço a diferença."

    Também já me tinha colocado essa questão e um dia destes ia colocá-la a ti.:)
    Aqui faz sentido para mim o que dizes, é a natureza que é inóspita e dura. Mas em países em que é a mão do homem que maltrata o seu semelhante, já é mais complicado para mim.

    Penso que entendo a leveza fisica e espiritual que sentes nas montanhas. Acho que também a sentiria...
    E penso que vou sentir porque decididamente quero fazer este trilho:)

    Resumindo e concluindo: ADOREI!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário