Peru, Lares trail - o lado B do Inca Trail (dia um)

Nesse dia, bem cedo, talvez umas quatro e meia da manhã, talvez cinco, a agitação começou. Muito subir e descer as escadas dos andares de cima para o hall de entrada e no sentido contrário. Pessoas a chamarem uma pelas outras, muitas mochilas acumuladas no centro da entrada de mármore, os recepcionistas a escreverem nomes e a controlar o melhor possível o nervosismo de toda aquela gente que rondava talvez as quarenta a cinquenta pessoas.

Eu estava cá em cima a olhar aqueles dois grupos que naquele momento eram um só.
A minha mochila já estava cá fora e o meu nome registado na recepção.
Também sentia as borboletas a esvoaçarem dentro mim. Estava numa calma aparente.

Aqueles dois grupos iam sair primeiro. Já tinham os respectivos guias que os iriam levar pelo Inca Trail até à cidade inca de Machu Picchu.
Eu estava à espera do meu guia. Estava num grupo substancialmente mais pequeno. Éramos três.
Íamos fazer o Lares Trail.

Sentia alguma inveja daqueles dois grupos, mas sabia que ia estar melhor do que eles.
O Inca Trail é de longe o mais famoso dos muitos trilhos que se podem percorrer à volta de Machu Picchu. É o mais comercial e portanto o que tinha também de longe mais pessoas a fazê-lo.
Para evitar a degradação excessiva deste trilho, o número de pessoas está limitado a quinhentas por dia, divididas em largas dezenas de grupos. 
Por sua vez, o Lares Trail estava vazio.

Entre um e o outro há diferenças consideráveis. Não só pela quantidade de pessoas que os percorrem, mas pela filosofia dos trilhos. 
O Lares é mais cénico. Paisagens lindas de montanha, grande contacto com as comunidades andinas, não se encontram sítios arqueológicos, situa-se a uma altitude maior e são três dias (35km), para o percorrer. Para chegar a Machu Picchu é preciso apanhar o comboio de Ollantaytambo para Águas Calientes, o que está muito, muito longe de ser uma contrariedade.

No trilho Inca, as paisagens são menos montanhosas, há uma overdose diária de degraus, não se cruza com populações, a altitude é mais baixa e mais regular, há vários sítios arqueológicos, são quatro dias para o percorrer (42 km) e termina no interior da cidade inca, na famosa Porta do Sol (Intipunku).

"Mas o Lares Trail está vazio"

Era nisto que eu pensava no meu segundo andar, enquanto esperava pelo meu guia e observava com os braços apoiados no corrimão a azáfama lá em baixo.



Cusco - Lares 


Lico é um tipo esguio de bigode fino, falar nasalado e uns olhos incapazes de se fixarem num ponto. Tinha um chapéu branco de abas largas em cima da dobra do joelho. Fez um rápido briefing com o grupo no hall de entrada do hotel.
O que iríamos encontrar, o grau de dificuldade, como caminhar, os efeitos da altitude, temperaturas e os apoios logísticos que estavam preparados para nós.
Verificou o nosso calçado, blusões e avaliou os sacos-cama. Aconselhou fortemente o uso de bastões. Apesar de reconhecer a utilidade deles, nunca me ajeitei com eles. Ou são indispensáveis, ou são um tormento. Sempre foram um tormento.

A australiana Catherine, a francesa Marie e eu, saímos de Cusco numa van e chegámos a Calca. O trajecto é feito por entre curvas, contracurvas, subidas e descidas abruptas na majestosa beleza da espinha dorsal da América do Sul, a cordilheira dos Andes, Vales, picos nevados e lagoas fazem parte da paisagem.
É a última aldeia antes de se partir para as termas de Lares, encaixadas num pequeno vale entre montanhas, a cerca de duas horas de distância e a 3200m de altitude, onde o trekking começa.

Comprámos alguns mantimentos para nós e algumas ofertas para as comunidades andinas que nos iam receber.
Bastante pão, vários sacos de folhas de coca, pares de meias e fruta. Material escolar, como lápis, afias, borrachas, lápis de cores, livros para colorir. Alguns brinquedos, carrinhos e camiões para os meninos, bonecas e elásticos de cabelo para as meninas e depois cordas de saltar e discos de atirar para todos.




As temperaturas estavam amenas e o sol apesar de quase vertical era suave.
O início da subida começa pelas escadas das termas.
Algumas centenas de metros após elas terem ficado para trás, sente-se o recuar do tempo à medida que se sobe. Cruza-se o rio Trapiche. Ouve-se o silêncio dos pássaros. A civilização começa a afastar-se, cada vez mais lá em baixo, cada vez mais inacessível.

Várias cabeças de gado estão espalhadas pelos pastos. Ovelhas, alpacas e lamas. Há mulheres no pastoreio e nos trilhos cruzo-me com mulheres inseparáveis da roca e fuso, a fiar lã. Mesmo no pastoreio frequentemente estão a fiar lã. Não vimos homens.
Distribuímos algumas das coisas que tínhamos comprado em Calca com as mulheres que se cruzavam connosco nos trilhos que nos conduziam a Huacawasi. Principalmente pão e folhas de coca.





O alimento dos Deuses


É quase chocante ver um andino considerar o pão como um alimento dos deuses, um alimento sagrado, a reverenciá-lo, assistir à ternura que lhe dedicam.
Nos Andes não há meios para fazer pão e ir até lá abaixo não é frequente, nem fácil. O pão é mesmo algo de muito especial e raramente faz parte da alimentação das comunidades que vivem com as cabeças metidas nas nuvens dos Andes.

Os andinos não tocam no pão quando o recebem. Os homens tiram o chapéu da cabeça e o pão é lá colocado por nós. Depois é que o tiram e dão um beijo nele. As mulheres recebem-no nas dobras das saias, por vezes também nos chapéus, os monteras, e o ritual repete-se. Tiram-no com a mão e dão-lhe um beijo.
Os sorrisos de agradecimento mostram falta de dentes e os que existem estão podres, não há dentistas nos andes.
Bolachas, rebuçados, chocolates e até pastilhas elásticas é algo que não se deve oferecer, precisamente por causa da completa ausência de higiene oral.


Para nós o pão é um dado adquirido. Saímos de casa e rapidamente temos pão na nossa mesa. E da mesma maneira negligenciamo-lo. Deitamo-lo fora quando este fica seco, ou meio comido e ninguém quer mais. Fazemos isto tão facilmente que nem temos a noção do sacrilégio que este gesto representa, do quanto por este mundo fora, e neste caso os peruanos andinos, gostariam e precisariam de o ter, mesmo nessas condições.






O ouro verde dos Andes


As folhas de coca representam bem a dureza da vida andina. São elas que permitem suportar o frio, a altitude, a fome e o cansaço.
Empilham-se umas vinte folhas secas de coca. Enrolam-se até formar um rolo e mete-se este a um canto da boca, nas bochechas que ganham o típico volume na zona onde este bolo está. Quando fica impregnado de saliva amolece e começa-se a mascar, os peruanos chamam-lhe chacchar, com determinação este rolo de um lado para o outro. Quando o rolo ficam completamente macerado, deita-se fora e prepara-se outra cama de folhas de coca.

Ao fim de algum tempo percebe-se que algo estranho acontece. A boca fica dormente, os olhos brilham mais e ficam mais abertos, o cérebro fica mais activo, mais acelerado e o corpo irrequieto. O mundo à nossa volta abranda.
E de facto, a sensação de frio, os efeitos da altitude e a vontade de comer, ficam diminuídos.
Faz todo o sentido a oferta de sacos de folha de coca para quem vive quase a quatro mil metros de altitude

Recuando no tempo mais de oito séculos encontra-se os primeiros registos da utilização das folhas de coca.
Para os incas, as folhas verdes da coca, o "ouro verde dos Andes" são sagradas, elas foram-lhes dadas pelo filho do Deus Sol, Manco Capac, quando desceu dos céus para lhes ensinar o que era a agricultura.
Outra lenda conta que numa aldeia havia uma mulher muito bonita e vaidosa chamada Coca, que com os seus atributos físicos, atraia os homens, para logo depois os descartar. Frustrados, os homens pediram que esta fosse castigada com a morte.
Tal aconteceu. O seu corpo foi desmembrado e enterrado em vários sítios. Algum tempo depois começaram a nascer arbustos de folhas verdes que ganharam o nome da jovem.

Ao contrário do que se pode pensar, não se apanha uma pedrada com folhas de coca. As folhas não são alucinogénicas. Para se tornar uma droga, a cocaína, é necessário um longo processo mecânico e químico envolvendo filtragens, gasolina ou querosene, soda caustica e ácido sulfúrico.

A utilização de coca no Peru é extensa. Detergentes, shampoos, pasta de dentes e uns rebuçados pouco eficazes, mas muito fixes, tinha sempre alguns comigo, que eram vendidos em todo o lado, inclusivamente nas ruas.





aldeia Huacawasi


A subida é constante mas não é dura. Aqui e ali aparece uma casa isolada.
"Cada um segue o seu passo" tinha advertido e insistido Lico ainda nas termas.
Por enquanto o mal de altitude - o soroche - ainda não morde os pulmões. Os dias passados em Cusco, a 3400 metros ajudam bastante. Perfilam-se à nossa frente três a quatro horas de caminhada até à aldeia de Huacawasi, o objectivo deste primeiro dia.

A poucas centenas de metros da aldeia, avistam-se casas de feitas com tijolos rudimentares. Há roupa estendida em cima de muretes de pedra e nas varandas de madeira. Vêem-se ovelhas, galinhas e porcos à solta.
As tendas já estavam montadas e destinadas. Nas entradas delas estavam as mochilas grandes de cada um dos seus inquilinos. Os putos assim que nos vêem começam a correr a nossa direcção sabendo perfeitamente o que nós tínhamos para eles.
Tivemos que os alinhar lado a lado, numa disciplina a rasar o militar para pôr ordem naquele expectante caos.
Carrinhos e camiões, travessões e bonecas. Material escolar para todos. Tal como tínhamos planeado.
Os travessões foram mal calculados. Uma das minhas pequenitas com as maçãs do rosto muito rosadas ficou sem o seu elástico. Ganhou um carrinho e um pão que guardou debaixo do seu braço.











O sol já descia no horizonte e a temperatura com ele.
Numa cerca de arame, uma ovelha e um cordeiro aninhavam-se um no outro. Os porcos e as galinhas já não se fazem ouvir e nem sequer estão à vista.
Sem o calor gerado pela subida o corpo ressentia-se duplamente. O chá quente de coca que o cozinheiro Jose tinha preparado aqueceu a alma e o corpo enregelado.
Senti a irrequietude a subir por mim. Preocupei-me durante uns breves segundos como é que iria dormir nessa noite. Depois encolhi os ombros.


Comentários

  1. Gostei. Descreves as coisas de uma forma que me sinto também eu viajante. Isso é uma das mais-valias destas crónicas.Vou lendo e vou-me imaginando a fazer os percursos, a pensar como reagiria perante determinadas situações (o frio, o calor, as pessoas...)
    As fotos belas como sempre. E o contraste, uma vida já longa e outras que começam.
    Gostava muito de ir ao Peru e fazer este trilho. Cativou-me. É algo a pensar....:)
    Beijo.

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    1. Sim, pensa :)
      O Lares Trail, não tem a fama e não é sonante como o Inca Trail, mas é uma porta de entrada de eleição para o modo de vida e cultura andina.
      O Peru é um país que deve constar na mochila de qualquer viajante. E o melhor de tudo é que é muito fácil viajar por ele. Não é um país que exige muito de quem viaja nele.

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  2. Que máximo! Tenho de repetir o Perú e fazer este trilho! Parece bem mais interessante que o Inca Trail.

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    1. Não sinto realmente que tenha ficado a perder por não ter feito o Inca Trail :)

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