Peru, Lares Trail - o lado B do Inca Trail (último dia)

Na montanha é sempre assim. Sempre que o sol se põe a temperatura desce abruptamente.
À semelhança das noites anteriores, é na tenda a temperatura do fogão do Jose enquanto cozinhava tornava o seu interior ameno.
Jogamos um jogo de cartas chamado O Presidente. Uma grande tina com pipocas e outra com amendoins estava em cima da mesa à nossa disposição.

Jose e Andrés deitaram-se no anexo da cozinha. Catherine e Marie estavam deitadas nas suas tendas.
Agarrei na tina dos amendoins e com Lico e Giscardo, um peruano se tinha juntado ao grupo em Mantanay e que iria encontrar de novo em Machu Picchu, fomos conversar lá para fora tirando amendoins à vez.

A noite está escura e densa. O enorme arco da Via Láctea está imperial. 
Por respeito à noite, desligam-se os frontais que permitiam ver os nossos rostos. Sobram os contornos das montanhas ainda mais escuras que a noite.
As estrelas são tantas na noite fria que é a sua luz que ilumina parcamente os nossos rostos.
Por muitas noites que passe na montanha, estes céus surpreendem-me sempre. Perante estes dois gigantes, em tamanho e em idade, as suas escalas são inimaginavelmente grandes, sinto-me alegremente um grão de pó.

A conversa solta-se. Tal como as cerejas, os temas sucedem-se. Alguns deles não têm conclusão e não é suposto terem. Apenas serem mencionados.
Falamos do Peru, da Bolívia e de Portugal. Da corrupção, do desemprego, do futebol e da beleza das mulheres sul-americanas e europeias. Sobre a importância do café, do chá de coca e das botas de montanha. 
Fala-se de tudo e muito do nada.


Yanahuara

O chão estava pejado de geada. Estalava ruidosamente quando eu o pisava. As tendas ao meu lado estavam silenciosas e as telas encontrava-se endurecidas pelo orvalho gelado. À medida que o sol avançava, recuavam as sombras e com elas cedia geada.

Jose lavava a loiça do dia anterior na água do ribeiro. Ofereci-me para o ajudar e arrependi-me de imediato assim que mergulhei os dedos na água. Contraí-me todo. A água estava absolutamente gelada. Abri os olhos para o cozinheiro:
-Está muy fria! Está helada!!
-Si és normal. La temperatura está muy baja.
Lembrava-me de uma vez ter encontrado água assim tão fria. Foi no Parque Nacional dos Glaciares, na Patagónia argentina, que tinha origem no degelo dos glaciares.
Quinze, vinte segundos com as mãos em contacto com a água e enfiava-as debaixo dos braços, mais quinze, vinte segundos e enfiava os dedos debaixo dos braços. Foi uma eternidade para lavar um garfo, um canivete e uma pequena caçarola. Lavar dentes também não era nada fácil. O contacto fazia doer os dentes e a garganta.
Jose lavava, tachos, panelas, talhares para várias pessoas, canecas como se nada fosse.

Andres também estava a pé. O Ruço estava junto à tenda grande. O miúdo subia e descia as encostas para juntar os cavalos que iam carregar a logística do último dia deste trekking que iria acabar na pequena aldeia Yanahuara a 2900m de altitude.






O dia anterior já tinha dado uma pequena ideia daquilo que iríamos encontrar no último dia nos Andes. Uma longa e intensa descida ininterrupta de quase quatro horas pelo meio de uma densa floresta queuña por trilhos ininterruptamente feitos de pedras soltas e irregulares.

Antes de mergulhar nesta imensa passadeira de calhaus, o trilho serpenteava entre grandes rochas semeadas pelos glaciares que dava um toque irreal à caminhada. Os Andes mostravam pela última vez a sua monumental imponência e beleza e cediam à densidade da floresta. As árvores queuña são típicas destas zonas. Com o seu aparecimento, transitamos das paisagens alpinas, com os picos das montanhas a roçarem os céus, paras as florestas de raízes bem enterradas na terra. E com elas, os meus pensamentos. Do reino dos grandes aves de rapina, do mundo do etéreo, eles desceram para o reino dos pés no chão, onde a gravidade nos agarra e prende ao mundo terreno e material.

São estranhas estas árvores. Elas são raras e os seus domínios estão protegidos pelo governo peruano.
Têm aspecto algo fantasmagórico e irreal. Os seus troncos e ramos, ásperos e grossos são de um castanho ruivo denso. Estão repletos de uma casca que mais parecem lascas a pelar, como as costas de alguém que apanha um escaldão e fica com a pele a cair. As suas folhas são finas, de um verde algo desmaiado e estreitas, a recordar lâminas. São estas características que as protege do frio intenso das altitudes, elas sobrevivem bem acima dos 3000m. Serão a nossa companhia bem até ao final do trilho.




Aguas Calientes

Chega-se a Yanahuara mesmo no final de um carreiro estreito e fechado.
Estranhei o piso plano e regular. Por uns momentos tive que ajustar o meu equilíbrio e os meus olhos ao alcatrão.
Senti imediato a familiar vontade de voltar lá para cima onde há espaço, horizontes e atmosfera cristalina e não há carros, casas e... alcatrão.

Para trás ficava, a beleza e o silêncio imponente dos Andes, a simpatia de Jose, que ficou com um par de luvas, o sorriso bonito de criança de Andres, que ficou com meu segundo par de luvas e um par de meias quentes, e o cavalo Ruço que enfiava o focinho debaixo do meu braço e ficava uns minutos assim.
Um breve almoço num quintal um pouco abandonado, uma ligação num monovolume para Ollantaytambo e depois viagem para Aguas Calientes no imersivo comboio Vistadome.
Um espectacular comboio da Peru Rail que deslumbra e cativa no primeiro degrau. Primeira impressão? Luz. Muita luz. O tecto tem grandes superfícies envidraçadas. As janelas são maiores que o normal proporcionando uma muito desimpedida e límpida visão para o exterior do comboio que nos atira lá para fora proporcionando uma tremenda sensação de espaço. A desimpedida paisagem passa bela e imaculadamente ao nosso lado.


Aguas Calientes. Chegar ao hotel, atirar as mochilas para cima da cama que ocupava a quase totalidade do espaço e ao contrário de Oscar Wilde, resisto à tentação de seguir a mesma trajectória delas.
Vou para as esplanadas beber uma das minhas bebidas preferidas peruanas: chicha morada.
Uma espectacular bebida não alcoólica com uma estranha cor roxa. É feita com milho roxo - maíz morado - cozido e depois misturado com abacaxi, maçãs verdes, limão, algumas especiarias como cravo das índias e canela. Quanto mais fresca estiver, melhor.

Tinha um grande copo vazio à minha frente de chicha morada e segurava outro igual na minha mão esquerda. Sentia em mim, a ansiedade dos grandes dias. Aqueles dias que antecedem as grandes conquistas, a realização de algo importante, algo maior que nós. Aquelas coisas que apenas dizemos em voz baixa, se nos atrevermos a tal, para que ninguém as oiça e depois as venham tirar de nós.
O céu escurecia rapidamente com um cinzento impiedoso e denso. Minutos depois todo aquele cinzento entornou-se. Chovia pesadamente e ruidosamente. Em condições normais estaria deleitado a ouvir a aquela música que salpicava tudo à soa volta, mas agora era barulho puro e duro.
No dia seguinte, bem cedo, iria apanhar a ligação de Águas Calientes para Macchu Pichu.
Desde que tinha chegado ao Peru, apenas vagamente a palavra chuva tinha assolado a minha mente, sem a valorizar.
Agora estava arrepiado com o que via e mais ainda com o que ouvia. Quase em pânico.





Comentários

  1. Mais uma bela viagem que "fiz" contigo:)
    Gostei da chicha morada, vou querer repetir...:))))

    Viajar é óptimo! Quando não se pode também é muito bom fazer estas viagens. Thanks:)

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    Respostas
    1. Bebi algumas litradas de chicha morada e não só. Eles têm muitas variedades de milho. Mas a morada era, de longe a minha favorita.
      ;)

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