Índia, Khajuraho - envergonhando o Kamasutra


Estamos algures entre os séculos X e XII no período da dinastia Chandela.
Com a queda e desaparecimento desta dinastia em 1150, Khajuraho e os seus templos, é invadida pelos muçulmanos que destroem a grande maioria deles. A população sem outra solução que não a fuga, desvia a atenção do invasor muçulmano e estes desinteressaram-se deles. A floresta tomou conta dos templos e foi um engenheiro britânico que na primeira metade do século XIX os descobriu.
Dos oitenta e cinco templos iniciais restam os actuais vinte e cinco. Os que não foram destruídos cederam ao acumular dos sete séculos em que estiveram abandonados.

Hoje Khajuraho existe porque os templos existem e porque nas suas fachadas exteriores estão descritas cenas de sexo explicito. E o mundo inteiro sabe disto.
A pequena cidade com pouco mais de vinte mil habitantes, está totalmente dependente dos turistas e viajantes que por ali passam e do aeroporto que os leva até lá. Incontáveis hotéis, restaurantes, bares e os incansáveis tuk tuk, são alimentados por eles.

Dá para ir a pé. Da cidade aos templos são cerca de três quilómetros. O normal é alugar um tuk. Após vencer uma densa e muito insistente, a roçar o insuportável, cortina de vendedores de recordações, que desconhecem o significado da palavra não, os templos surgem elegantemente perante nós com um amarelo gasto pelo tempo, ladeados por passeios pavimentados e rodeados por uma relva razoavelmente bem tratada.
Contratar um guia é altamente aconselhável face à quantidade de histórias que estes relevos têm para contar.












Não há volta a dar.
Quem vai a Khajuraho, vai à procura de ver sexo. E vê. Mas não tanto quanto pensa.
Apenas cerca de dez por cento dos relevos dos templos de Khajuraho são dedicados ao sexo. E estão espalhados ao longo de extensos relevos, e não concentrados num único mural.
Ao contrário do título deste post, e apesar de a associação ao Kamasutra ser um lugar comum, não existem evidências claras que as cenas sexuais descritas nas paredes dos templos estejam ligadas ao famoso livro que foi escrito há mais de um milhar de anos.

Actualmente a Índia é muito fechada e conservadora no que respeita à forma como o sexo é abordado e falado. Põe-se uma questão pertinente:

"Então porque o sexo é tão abertamente e desbragradamente abordado nestes templos??"

O guia Arun explica:
- O sexo na Índia nunca foi um assunto tabu. Foi com a chegada dos invasores muçulmanos e com os cristãos nos séculos XII e XIII que nos trouxeram a sua visão envergonhada e inibidora do sexo, de este ser sujo, que devia ser escondido, que a Índia se fechou fortemente sobre ele.
O que está descrito neles, o que os relevos ilustram é o dia a dia e a própria vida em si. Temos deuses e deusas, apsaras dançarinas, guerreiros, músicos, camponeses e vários animais representando o seu trabalho com o homem e a natureza. E naturalmente o amor, a sedução e o sexo estão presentes. Estes não podem ser separados da vida. São um capítulo dela, são naturais nela, e a própria vida, a sua concepção depende deles.








Pondo as mãos num v invertido, ele prossegue:
-  Para a dinastia Chandela, a vida artística, cultural e religiosa e a vida política deveriam estar separadas uma da outra. Khajuraho tornou-se a capital religiosa, em Mahoba, a sessenta quilómetros daqui, foi estabelecida a capital política e administrativa do reino.

Arun olhou para o chão e mostrou com o indicador estendido uma espécie de esboço de um desenho erótico onde um homem parece que penetra uma mulher, e depois olhou para a parede de novo. Com as mãos no ar simulou o contorno generoso de um corpo de mulher e prosseguiu:
-  Os reis Chandela eram praticantes e defensores do sexo tântrico,
- Nos vários relevos destes templos, a mulher é sempre retratada de formas sensuais, elegantes, voluptuosas e abundantes. É a atracção pela beleza. Eles consideravam a mulher de igual para igual com o homem. Um sem o outro não faz sentido.
Arun estava embalado. Era visível que acreditava sinceramente no que dizia:
- Nós, hindus, acreditamos no linga e na yoni. O linga, que representa o deus Shiva, é o falo masculino, a fonte da vida, mas sem a yoni, o equivalente feminino do linga, que representa a deusa Shakti, o receptáculo dessa fonte de vida, esta não se concretiza. Todos estas esculturas celebram precisamente esta união, de uma forma livre, simbólica e sem preconceitos. No hinduísmo a energia sexual é entendida como uma energia universal e de comunhão. É uma ligação ao deus Shiva - conclui Arun, com as mãos em forma de leque aberto acima da sua cabeça.








Percebi bem o conceito. É muito semelhante ao Yin e Yang do taoismo chinês. Duas forças, duas energias, duas realidades opostas que se complementam e que incorporam em si próprias um pouco do seu oposto.
Era comum em certos festivais indianos, e em outras várias culturas que não a hindu, por exemplo as africanas e celtas, os jovens irem cantar, dançar, fazer amor nas florestas e iniciarem-se na vida sexual. A chegada dos equinócios eram celebrados desta maneira.


Os templos de Khajuraho estão longe de serem, ou de poderem serem encarnados como pornografia com um milhar de anos de história. É redutor e diria ofensivo encará-los desta forma. Ou pior, ir até lá apenas por causa disso.
É necessário largar a pseudo puritana cultura ocidental e vestir a pele da multi-milenar cultura hindu para sermos capazes de ir além desta imagem.
Ouvir Arun a falar sobre isto, mostrava precisamente este ponto de vista.









Se a espiritualidade de Khajuraho manifesta-se de uma forma muito carnal, fortemente erotizada, libertina e visualmente materializada, a partida para Varanasi - aqui, aqui e aqui - iria atirar-me para o lado oposto da espiritualidade; a despedida definitiva da existência material.

Em Varanasi iria descobrir e aprender, que a evolução espiritual e a união com a energia universal, dá-se através da libertação do corpo. Visto como um obstáculo, um invólucro efémero, frágil e quase inútil, para atingir etéreo sagrado, o objectivo máximo do nosso eu espiritual, o atman: a moksha.



Comentários

  1. Belíssimo texto e fotos, como sempre.
    Continua a ser um imenso prazer vir até aqui:)

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