Peru, Machu Picchu - eu sei, mas mesmo assim...

Tinha chegado por volta das seis e meia da manhã, e já eram sete e meia ainda nada.
Andava a olhar para o relógio quase de quinze em quinze minutos nervosamente. Estava nos terraços superiores, uma espécie de varandins para as ruínas incas do século XV de Machu Picchu aninhadas a 2500m entre três montanhas. A mais famosa, a que enquadra e dá o misticismo à velha cidade é Huayna Picchu (montanha jovem). A outra dá o nome às ruínas, Machu Picchu (a montanha velha) e a terceira é a Putucosi (a montanha feliz).
Lá em baixo, o rio Urubamba, um fio de água, serpenteia placidamente no vale ao qual dá o nome ao vale.

Tal como eu, nesses socalcos, algumas dezenas de pessoas perfilavam-se ao lado umas das outras. Nos níveis abaixo, também outros esperavam pela visão anunciada. A grande maioria dos visitantes ainda estavam em Aguas Calientes. Ou ainda estavam para se levantar, ou estavam a apanhar os autocarros que os levariam até lá cima. 
Eu tinha apanhado os primeiros que começavam a circular. O incessante sobe e desce que dura o dia inteiro até o recinto fechar, começa bem cedo.

Era esta paisagem que queria ver, que estava ansioso por ver. 
Claro que sabia que estava lá, que estava no sítio certo, mas aquela densa e persistente parede de nevoeiro fazia-me, quase conscientemente, duvidar disso. Se as ruínas mais famosas, mais reconhecíveis e icónicas do mundo estariam mesmo ali.
Apesar de ter essa esperança subliminar, sabia também que muito dificilmente iria conseguir ver o nascer do sol. As neblinas são presença quase permanente nas ruínas durante as primeiras horas da manhã. Ao contrário do dia anterior, não chovia. Menos mal.
Mas não estava à espera de uma neblina daquela dimensão.  

“Pedro, à medida que a manhã avança e aquece, a neblina dissipa-se.”




Enquanto todos estavam a olhar para aquela infindável tela cinzenta, para ocupar o tempo que não passava, decidi ir até à Ponte Inca. É uma caminhada feita num caminho estreito e escorregadio, que como esperava, e desejava, estava naquele momento vazio. Ele termina numa frágil cancela de ripas de madeira que impedia a entrada no vazio.

À minha frente, um muito estreito trilho estava talhado na face vertical do granito.
À esquerda, impunha-se a enorme monumentalidade da montanha, à direita, imperava a longa vertigem do abismo, amortecida pelo verde dos arbustos e irregularidade das rochas.
Num certo ponto o trilho interrompe-se e retoma cerca de seis metros depois. A unir as extremidades está uma ponte feita com troncos de madeira. Em caso de fuga, a retirada dos troncos separa quem foge de quem persegue.






No regresso aos terraços encontrei uma sueca vestida de preto. Bonita, de olhos azuis mansos e cabelos louros, tentava furar a neblina com a sua máquina fotográfica.
Estava desanimada. Mostrou-me a fotografia. Parte da imagem estava nítida, iluminada pelo sol da manhã. A outra parte estava barrada pela neblina opaca. O contraste da luz funcionava muito bem.
- Não consigo tirar melhor do que isto.
- As minhas estão iguais. Não te preocupes.
Dei-lhe a minha esperançosa sabedoria:
- À medida que a amanhã for avançando, o sol faz aquecer a atmosfera e a neblina desaparece. Acredita em mim.
- Estou aqui há várias horas e nada mudou.
- A quem o dizes! Fizeste o Caminho Inca?
- Sim, o guia tinha prometido que daria para ver o pôr do sol. Chegámos bastante cedo.
Estava visivelmente agastada com as perspectivas goradas.
- Fiz o Lares Trail. Passei três dias nos Andes, entre aldeias andinas. Cheguei ontem a Águas Calientes e choveu bastante ao fim do dia. O céu estava muito escuro. Era pouco provável que desse para ver o nascer do sol hoje. É raro vê-lo por causa das neblinas matinais. Estão quase sempre presentes. Eu também o queria ver. Porque não vais até à Ponte Inca? Ela impressiona.
Anne alisou o cabelo e espetou os seus olhos nos meus:
- Já fui. Ia escorregando no verdete do caminho ao passar por baixo dos ramos da árvore. Nem imagino como eles terão conseguido talhar a rocha à aquela altura.
Tinha pensado o mesmo e em quantas vidas se terão perdido para a construir. O que é belo, o que impressiona, tem sempre um custo em vidas. É o preço a pagar pela sobrevivência à passagem do tempo.

A sueca correu o cursor e mostrou-me as três imagens que tinha da ponte. Gostei delas.
Voltámos aos terraços e Anne regressou ao seu grupo do Trilho Inca.




Repeti o meu mantra:
“Pedro, à medida que a manhã avança e aquece, a neblina dissipa-se.”
"Eu sei, mas mesmo assim..."

Algo mudava agora. A neblina enfraquecia, desvanecia-se. Estava menos espessa. Ainda vão via os contornos, mas já havia verde por detrás dela. O coração batia agora forte, apressado, vibrante no meu peito. Estava quase, estava quase, inacreditavelmente quase. 
Cada vez mais fina, cada vez mais fraca. Os contornos da montanha da cidade, desenhavam-se. A base apareceu. Havia magia. Muita magia. Muito mistério. Apenas uma tímida nuvem coroava o topo de Machu Picchu.
As ruínas estavam gloriosas, imperiais, maravilhosas, lindas até mais não. 

"Pedro, viste? A manhã avançou, ela aqueceu e a neblina dissipou-se"
"Ufff!!!!"

As pernas tremeram e ajoelhei perante a sua beleza. Até agora, apenas uma única vez tinha ajoelhado devido ao peso esmagador da beleza sublime.
Em 2004, na Tanzânia, a quase seis mil metros e com um frio de -12ºc, esperei uma hora para que no pico Uhuru, na cratera do vulcão Kilimanjaro, o tecto de África, uma teimosa neblina se dissipasse e desvendasse os incríveis e majestosos glaciares do Kilimanjaro. Nessa altura as pernas cederam pela primeira vez.










Nos socalcos batiam-se palmas a esta deslumbrante e genuína maravilha do mundo. Um jovem rodeado por amigos estava de joelhos com um anel na mão direita erguida a pedir em casamento a sua namorada. O sim foi óbvio. Houve pulos, abraços e gritos. Nos socalcos voltaram as palmas.
Os guardas que percorrem o recinto dizem que isto acontece quase diariamente. Após a hora de fecho têm que percorrer todos os recantos das ruínas à procura de casais que tentam lá passar a noite. Há sempre quem consiga, assegurou um deles.
Quem chegou a meio da manhã, não saberá nunca o que perdeu. Em Machu Picchu, a cama não é boa conselheira. O sacrifício de uma noite mais curta em prol de uma madrugada mais longa, é um privilégio.


Passaria quase nove horas no recinto. 
Iria subir e descer várias vezes as ruínas, vencer os íngremes e irregulares degraus dos socalcos inúmeras vezes, cirandar por entre centenas de peruanos, ziguezaguear por entre grupos de asiáticos e incontáveis ocidentais. 
Iria passar várias vezes pelos ícones desta cidadela Inca: Praça Central, a Pedra Sagrada, o Templo do Sol, ver as nascentes de água, o Templo das Três Janelas, a Intihuatana, o misterioso Templo da Lua e por aí fora. Várias vezes iria admirar a perfeição do corte dos blocos de pedra e a forma como estes estão alinhados uns com os outros. 












E em cada uma dessas várias vezes, acabaria sempre nos terraços, ou na Casa do Caseiro, um casinhoto de pedra, discretamente perdido, desprezado por quase todos, no topo de um socalco bem verde, lá do alto, sempre pasmado, sempre incrédulo, por ter concretizado algo que verdadeiramente nunca pensei que pudesse vir a ser concretizado: ver as ruínas da cidadela de Machu Picchu.

Machu Picchu é um local maravilhosamente belo, de elegância plena, inundado de história, recheado de mistério, mítico e profundamente místico. Emana energia, força, vibrações poderosas.
Mas acima de tudo, definitivamente acima de tudo é um local de emoções. Fortes. Tão fortes.
E aquelas neblinas envergonham qualquer descrição que se tente fazer, arrasam qualquer fotografia que se tire. Nada faz jus ao que se sente quando elas começam a desvendar a imagem que aprendemos a sonhar em apenas capas de revistas, documentários, ou a ilustrar uma brochura de uma qualquer viagem ao Peru.
Tem que se lá estar. Temos que as sentir dentro de nós.



Comentários