Camboja, Angkor Wat - um soneto


O complexo de templos de Angkor espalham-se ao longo de uma área de cerca de quatrocentos quilómetros quadrados. Foram construídos entre inícios do séc IX e meados do séc XII num período de tempo que rondou os quatrocentos anos, pelo império Khmer.
Neste intervalo, mais de mil templos foram erigidos, dos quais muito poucos restam. A maior parte está em ruínas e pouco mais são que blocos de pedra, pisados pelo tempo, empilhados e espalhados por áreas bem delimitadas onde a natureza e o seu verde reclamaram a sua posse.

O templo inquestionavelmente mais conhecido de todos eles é Angkor Wat, o templo de Angkor. Foi mandado erigir pelo rei Suryavarman II, em honra do deus hindu Vishnu.
A sua construção terá sido iniciada na primeira metade do séc XII e terá durado cerca de trinta anos a concluir. 

Há a forte convicção que o objectivo deste templo seria servir de câmara funerária para o rei que o mandou erigir. Mas esta teoria começou a ser contestada muito recentemente. Pelo esmagador número de representações de apsaras em todo o templo, a rondar as duas mil, entre a comunidade que estuda Angkor Wat vai-se sussurrando que a força motriz que esteve por detrás da sua construção talvez não tenha vindo exclusivamente do rei Suryavarman II.

Mas nem se tem a certeza se terá sido mesmo aqui que o rei Khmer foi enterrado. Há versões que tendo morrido em batalha, este terá sido enterrado também no campo de batalha, outras dizem que, apesar de ter morrido em batalha, o seu corpo foi cremado e as cinzas depositadas em Angkor Wat por debaixo de uma estátua de Vishnu.

É esta a beleza quando estamos perante algo onde a pegada do tempo é de tal maneira grande que ela esbate os "comos", os "quandos" e os "porques". Tudo o que se sabe, ou se pensa que sabe, é baseado em suposições mais ou menos aceites, em frágeis factos mais ou menos consensuais, e onde o lugar para o mistério e para a interpretação quase livre e imaginada, é vasto.




Acordar bem cedo, tipo quatro da manhã.
Pretendo evitar que as grandes filas para comprar o bilhete que dá acesso ao complexo de Angkor - as bilheteiras abrem às cinco da manhã - se tornem ainda maiores e garantir que estou no lugar certo à hora certa.

De Siem Riep, acerca de seis quilómetros de Angkor, parte por volta das quatro e meia, uma procissão de tuks, bicicletas, carros e autocarros para as bilheteiras, e daí para Angkor Wat. É uma imagem curiosa e divertida. Ultrapassa-se, e é-se ultrapassado, à esquerda e à direita, num caos orientado no mesmo sentido. Há quem filme este êxodo urbano.
O céu está densamente escuro por cima de mim, mas o horizonte apresenta sinais de começar a ganhar tonalidades quase imperceptíveis, de um azul mais claro.

Nas bilheteiras, são raros os locais. Muitos ocidentais e asiáticos. Apesar das filas serem razoavelmente, longas, elas andam depressa. Quando chega a vez, é pagar, dar um passo para o lado, um sorriso adormecido a olhar para a câmara, e depois a fotografia.
Depois mais três passos para o lado, para sair da fila, esperar dois minutos e uma jovem surge com um molho de entradas na mão. Não diz nada, e rapidamente e à nossa frente, passa-as na mão, como cartas na mãos de um mágico, uma a uma. Cada um de nós está atento e tira a correspondente à fotografia.

Acelero para o meu tuk, estão lá colegas meus, rezando para que esteja no mesmo sítio onde o deixámos. Eles estão plantados em todo o lado e as luzes não são suficientes para os identificar, isto se elas funcionarem. O nosso condutor até pode acenar com a mão e chamar-nos, mas todos os outros fazem o mesmo. Se o motorista resolver mudar de lugar, as coisas complicam-se seriamente. Mas oiço as suas vozes e o tuk estava fielmente no seu lugar.

Ele deixa-nos na entrada ocidental do complexo. As bilheteiras e a entrada estão em locais separados, talvez um par de quilómetros distantes entre si.
O primeiro de muitos controlos, em cada templo há um, do bilhete personalizado com a nossa fotografia, é feito à luz de uma lanterna minúscula.

Estugam-se os passos. Evitam-se algumas poças de água e chapinha-se noutras para chegar à frente dos famosos pináculos piramidais (prasat) de Angkor, os de Angkor Wat. Entre mim e eles há um tímido lago que fará toda a diferença.
Uma longa e bem recheada linha de pessoas estão na borda dos dois lagos à espera que a magia aconteça. Atrás de mim, num edifício razoavelmente em bom estado - a Biblioteca - ao longo da pequena escadaria de pedra e no seu patamar, estão mais pessoas sentadas ou em pé à espera do mesmo. Há quem se isole da multidão e escolha um sítio bem à frente dela.

Há câmaras fotográficas, câmaras de vídeo e smartphones. Tiram-se selfies, fotografias aos saltos no ar ou de braços abertos. Há fotos de grupo e poses de facebook. Aqui e ali, colocados no chão, ou a saírem das mochilas, há modestos pequenos-almoços em sacos de plástico brancos, preparados pelos hotéis para os madrugadores. O objectivo de todos nós, naquele momento, é único. Assistir ao nascer do sol, num dos locais mais famosos em todo o mundo: Angkor Wat.

Pela segunda vez, vou tirar a imagem icónica das prasat do templo, escurecidas e recortadas, pelo contraluz de um céu iluminado pelo sol nascente.
A água dos lagos adicionam uma mística muito especial à imagem. Elas espelham na terra o que se passa nos céus. Um reflexo quase perfeito ligeiramente enrugado por discretas e muito pequenas gotas de água que caem e pelos insectos que neles pousam.
A minha imagem será igual a milhões de outras, e pouco diferirão das minhas anteriores.
Mentalmente adapto uma frase que circula na internet - "Não procuro a diferença, procuro o momento".


Tal como seis anos antes, chuvisca imperceptivelmente e o céu está fechado a sete chaves na direcção do templo. Sei por experiência própria que este nascer do sol não será fulgurante ou flamejante. Será frugal e tímido.
Na Namíbia, no topo da Duna 45 no deserto do Namibe, assisti a um dos nascer do sol mais poderosos da minha vida. O sol nasceu em força, rápido, vibrante, explosivo em luz. Um piscar de olhos em falso e aquele nascer estava perdido.

Em Angkor, não. Ele será lento e sereno. Será um poema, diria um soneto, que se lê sentindo todas as suas rimas.













Comentários