Egipto, White Desert - o jardim dos sonhos impossíveis

Às vezes, em sonho triste

Às vezes, em sonho triste
Nos meus desejos existe
Longinquamente um país
Onde ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber.
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra.
O amor não é amor
Nesse país por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive:
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

Fernando Pessoa, 21.11.1909


Levantei-me cedo para assistir ao nascer do sol.
Khepri, o Deus egípcio que assume a forma de um escaravelho sagrado e representado por uma figura humana com cabeça de escaravelho, fazia o sol renascer, rolando com as patas de trás, tirando-o debaixo do horizonte onde o tinha colocado na noite anterior.

O meu saco-cama, a esteira e os cobertores que os beduínos me tinham dado tinham feito bem o seu papel. Os guias ainda estavam embrulhados nas mantas. Dois montes de roupa amassados, lado a lado e espalhados nas areias, indiferentes ao labor do sagrado escaravelho.

À volta das cinzas frias da fogueira, havia marcas de patas dos fenecos que tinham rondado o acampamento à procura de uma borla que tivesse ficado esquecida nas areias, ou mais acessível num saco de plástico mal fechado. Não tinha dado por eles.

Durante a noite tinha cruzado a véspera de Natal. Que silêncio. Que quietude. Nem uma aragem perturbava o ar frio matinal do deserto que mordia a ponta dos dedos das minhas mãos. Apenas ouvia o lamento das últimas estrelas que iam perdendo o seu brilho para o madrugar da manhã.
A calma do deserto é tão profunda que o pisar daquele chão estranho aos meus pés, um misto de areia e calcário, um misto de cores amarelo e branco, era ensurdecedor, e os clics da câmara fotográfica, estridentes. Entre quem dormia no acampamento, haveria quem se queixasse que eu tinha feito muito barulho...
Era uma manhã de Natal tão diferente da do meu mundo ocidental.

Enquanto os meus pensamentos se soltavam e pairavam suavemente acima, mas não distantes, de mim, deixando-me ausente deles, passou, calma e majestosamente à minha frente, uma avestruz de pescoço empertigado e mais atrás estava uma baleia a saltar fora das águas feitas de areia salpicando tudo em seu redor, tentando alcançar a orgulhosa ave incapaz de voar.
À frente iria encontrar uma tartaruga vigilante no topo de morro e mais tarde um coelho expectante de olhos fitos no horizonte. Talvez à espera que a tartaruga desse um sinal com a cabeça da chegada da avestruz e da baleia.


Debaixo de milhares anos de acção dos elementos, o tempo e natureza tinham impresso no calcário tudo o mais que a imaginação quisesse trazer ao de cima: galinhas e cogumelos, avestruzes e tartarugas, falcões e coelhos, cones de gelados de sabor a baunilha ou talvez... a nata.

Quando o jipe de Mensah ao final da manhã saiu aos saltos do irregular chão do White Desert para entrar no Black Desert, deixei para trás um dos locais mais fascinantes onde estive até ao momento: um surreal e branco jardim de sonhos impossíveis.
Na última visão desta paisagem alva, o poema de Fernando Pessoa assomou na minha cabeça como os créditos de um filme que nos deixa marcas e que guardamos no coração com saudade.















Comentários