Bolívia, Uyuni - el cementerio de trenes!


A três quilómetros de Uyuni, na antecâmara da entrada para um dos sítios mais inacreditáveis que a natureza nos pode oferecer, o salar de Uyuni, o maior planície de sal do mundo, os dois guias levaram o pequeno grupo a um cemitério de comboios.
“El cementerio de trenes”, foi o que comentaram quando o jipe se imobilizou em frente as várias carruagens e locomotivas caídas à minha frente. 

São memórias de um passado não muito longínquo. Em 1889, numa revolução industrial tardia, Uyuni tornava-se a primeira localidade boliviana a ver um comboio chegar. A linha ferroviária pioneira, construída por britânicos, e com locomotivas britânicas, unia esta localidade ao porto chileno de Antofagasta. Transportava estanho, ouro, prata das minas Huanchaca nos andes bolivianos até ao oceano Pacífico, onde depois se espalhava pelo mundo. 
No regresso, trazia gente de línguas distantes, pessoas de outras paragens da Bolívia, em busca de algo melhor ou para matar saudades de quem tinha ficado para trás e muitas histórias de contrabando.
Durante décadas fez este ir e vir entre o oceano e as montanhas. Nos anos quarenta do sec XX, a actividade mineira começa a diminuir até cessar, à medida que as minas esgotavam os seus filões. 
Então, comboios, locomotivas e carruagens, foram depositados, descartados e atirados para este ermo salgado.

Nesse tempo várias linhas foram construídas. Algumas ainda se mantêm, como a que une Oruro a Uyuni, exactamente a mesma que tinha usado para chegar até aqui.


Caminho em silêncio, com as mãos nos bolsos. O ambiente à minha volta está também silencioso. Consigo claramente ouvir o suave restolhar do meus pés no chão. O vento oscila, indeciso entre a calmaria e as rajadas mais fortes que por vezes fazem levantar novelos de areia no ar.
A minha câmara está pendurada no meu ombro esquerdo e atirada para trás das minhas costas. Ainda não estou capaz de fotografar estas mortalhas de uma arqueologia industrial ainda recente. Preciso da sua autorização e ainda não a tenho.

Sinto um tremendo respeito e admiração por comboios. Puxado por eles, veio a história, desenvolvimento e o progresso. Trouxeram tecnologia, romperam isolamentos e diminuíram distâncias sociais.
Estas estruturas retorcidas, enferrujadas, vazias de alma, mas ainda assim cheias de essência física e dignidade, acentuam ainda mais esse respeito.
São fantasmas, esqueletos metálicos letárgicos e resistentes que foram despojados do seu interior. Muito devido ao vandalismo ao longo de várias décadas, muito devido às chuvas e aos ventos salgados que o salar de Uyuni faz soprar que foram roendo, corrompendo, estes ossos feitos de aço ao longo dessas mesmas décadas.

Muitas carruagens estão pintadas por grafitis de mau gosto. Por todo o lado há assinaturas com nomes de alguém que vem de um país distante: Austrália, Itália, Argentina, Holanda, Estados Unidos.
Uma carruagem tem um baloiço montado numa estrutura desnudada de painéis, várias têm chapas dobradas que a força e a necessidade humana não foram capazes de arrancar. Vejo carruagens isoladas parcialmente cobertas de areias, algumas tombadas. Há rodados solitários e há outros que estão agrupados, mas todos eles estão perdidos, desalojados de carris que apontam para uma direcção que vai para lado nenhum.
Passo por caldeiras de vapor, cisternas e tanques, cujas formas deixam apenas adivinhar o que outrora já foram e o que já fizeram.

Tiro fotografias, mas poucas. O som da câmara incomoda-me, Não me apetece perturbar estas silhuetas estáticas no espaço e no tempo. É um cemitério de mais de cem esqueletos industriais e ressequidos, banhados por um intenso castanho corrosivo que contrasta com o amarelo claro generalizado do deserto. Vejo-o como uma vala comum, uma morada, um definitivo apeadeiro ferroviário que deve ser respeitado.
Ouço o silvo do vento seco, quando este mais forte passa pelos buracos abertos na chapas. Um queixume, um lamento choroso, de tempos irreversivelmente perdidos de uma glória esquecida.

Quando os guias me chamam para entrar no jipe, olho e admiro pela última vez estes seres mudos que vão desaparecendo lentamente, paulatinamente no tempo. Curvo a cabeça, levo a mão direita ao peito e rezo uma oração qualquer ao Deus dos Aços, para que este os proteja e preserve o mais possível.














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