Lalibela, Etiópia - fé monolítica

O primeiro europeu a observar as igrejas monolíticas de Lalibela foi o padre português Francisco Álvares em 1520. Na sua obra Prestes João das Índias ele escreveu de uma forma bastante eloquente o impacto que elas tiveram em si:

[…] Enfado-me de mais escrever destas obras, porque me parece que me não crerão se mais escrever e porque, ao que escrito tenho, me poderão tachar de não verdade, portanto juro em Deus cujo poder estou que todo o escrito é verdade e é muito mais do que escrevi e o deixei por me não tacharem ser mentira. E porque a estas obras não foi outro português senão eu que fui lá duas vezes para as ver, pelo que ouvia delas. […]

Como em tudo o que envolve longos períodos de tempo, as lendas crescem e tornam-se maiores e mais interessantes que a própria história.
A história diz que se chamava Gebre Mesquel Lalibela, nasceu em 1181 e morreu em 1221. Pertencia à dinastia Zagwe, era descendente do rei Salomão e reinou durante quarenta anos.
A lenda começa na sua mãe. Quando o futuro rei nasceu, foi rodeado por um enxame de abelhas que não o atacaram. A mãe após ver isto concluiu que era um sinal divino, que ele seria um grande e justo rei e decidiu que o seu nome seria Lalibela, aquele por quem as abelhas veneram, obedecem.

A vida para Gebre Mesquel Lalibela não começou fácil. Tinha um irmão mais velho, o rei Kedus Harbe.
À medida que Lalibela foi crescendo, o medo do rei de ser deposto e receoso do bom augúrio, Kedus envenenou o irmão, que não morreu mas permaneceu em coma durante alguns dias. A lenda entra de novo em cena. 
Terá sido durante estes dias que uma escolta de anjos elevaram o seu espírito aos céus e deu-lhe a visão que Lalibela iria concretizar: reproduzir a cidade sagrada que Saladino tinha tomado a 2 de Outubro de 1187, a cidade de Jerusalém.
No entanto a história faz-nos descer à terra. Receando perseguições, Lalibela exilou-se em Jerusalém. Terá sido durante esta estadia que idealizou reproduzir esta cidade perdida para os sarracenos, na Etiópia, para que continuasse a existir um local sagrado de peregrinação. Quando regressou terá conquistado, com a ajuda de cavaleiros templários, o poder derrubando o seu irmão e concretizado o que tinha imaginado.

Não se sabe quanto tempo terá demorado a construir este complexo, a Nova Jerusalém. A palavra talvez, vai-se multiplicar. talvez pouco mais de vinte anos, talvez uma década, talvez até tivesse começado antes de este nascer. O período mais consensual, é que os quarenta anos de reinado de Lalibela não terão chegado para as concluir e talvez este até nem terá visto a obra concluída.
O número de homens envolvidos também é incerto. Talvez vinte mil homens, talvez quarenta mil.
Aqui a lenda também dá uma ajuda à perpetuação da história de Lalibela. Os homens trabalhavam de dia e à noite trabalhavam anjos dobrando o trabalho humano. 
Foi algures entre os talvez, a história e a lenda, que foram erigidas as onze igrejas monolíticas de Lalibela.



Lalibela, situada no norte remoto da Etiópia, na província Wollo e em plena região Amhara, é uma cidade pouca digna do nome. Será mais um vilarejo perdido e encaixado entre montanhas. É suja, poeirenta, com um comércio caótico e descontrolado, com um assédio desmedido, a exigir uma paciência infinita a quem viaja por esta zona. Há animais mortos nas estradas, gado sem pastores, crianças que correm em casas mal construídas, se construídas, roupa e utensílios caídos na poeira de estradas de terra batida, tachos tombados em cima de muros.
Seria completamente esquecida pelos mapas, não fosse as suas lendárias igrejas talhadas na rocha.
Nem sempre esta cidade confusa e desarrumada, foi conhecida por Lalibela. O seu nome original era Roha. Ganhou o nome actual após o rei que lhe daria o nome, morrer.

São onze igrejas distintas umas das outras, ligadas entre si por labirínticos corredores, escadas e rampas. Muitas delas têm pátios e quase todas, se não todas, oitocentos anos depois da sua construção, ainda hoje são utilizadas para cerimónias religiosas.
Os que as torna verdadeiramente espantosas, é o facto de terem sido escavadas na rocha basáltica, à mão, e de cima para baixo. Algumas foram trabalhadas directamente na rocha, outras a partir de blocos isolados de pedra.

Os seus arquitectos tiveram que as imaginar, pensar na sua arquitectura, de uma forma invertida. Literalmente começaram pelo tecto em todas elas. E depois de fora para dentro. À medida que o exterior era refinado e decorado, o interior era escavado.
Em determinado momento tiveram que saber onde e quando abrir janelas e escadas, arcos e altares, estátuas e baixo-relevos, trilhos e pátios, tumbas e catacumbas, e até um rio, a reprodução do Jordão (Yordannos), souberam onde o colocar.
É o Yordannos que separa estas igrejas em dois grupos. O lado norte representa a Jerusalém terrestre, do outro lado, o oriental, a Jerusalém celestial.


As igrejas de Lalibela estão muito longe de serem um trabalho puro e duro de cinzelar, de partir, esculpir pedra. São bem mais do que isso. Há arte e cuidado em cada uma destas igrejas. Mistura-se arquitectura e engenharia. Todas elas são diferentes no tamanho e no seu desenho. Cada uma é uma criação única.
Mas três destacam-se:

Situada na Jerusalém terrena está Bet Medhane. É a maior a mais majestosa de todo o conjunto das igrejas de Nova Jerusalém e a maior do mundo no seu género. São trinta e três metros de altura, por vinte e cinco metros de largura e com trinta e oito colunas no seu interior. Totalmente esculpida num único bloco de rocha.

Também do lado terreno está a Bet Golgotha, onde se encontra o Túmulo de Adão. Esta igreja partilha a entrada com a Bet Mikael, e é por esta que se entra para a primeira, onde se acredita que está o túmulo do rei Lalibela, na capela Selassie. Podendo as mulheres entrar pela Bet Mikael, no entanto a entrada na Bet Golgotha está-lhes vedada. É a única onde isto acontece.
Ver as sete esculturas esculpidas nas paredes representando santos em tamanho real, apenas é permitido aos homens.

A terceira é Bet Abba Libanos, a única que foi erigida numa parede de rocha. Situa-se no lado celestial. Das onze igrejas, esta também é a única que terá sido mandada erigir pela mulher de Lalibela, Meskel Kebra, para homenagear o seu marido. De novo a lenda intervém: a igreja foi erigida numa única noite, apenas com a intervenção de anjos.


Há excepção de uma, as igrejas estão protegidas por grandes toldos de um castanho amarelado ancorados numa espécie de tripés de aço invertidos. Para entrar é preciso tirar os sapatos. À porta está alguém que guarda os sapatos, uma senhora, um padre ou um noviço de túnica branca.
Os seus interiores são simples e estreitos. O elevado contraste da pouca luz interior, uma mistura da fraca e difusa da luz artificial florescente com a luz natural que entra pelas estreitas janelas em forma de cruz abertas nas fachadas, com a intensa luminosidade do exterior, obriga a um piscar e franzir de olhos cá fora e uma adaptação de alguns segundos, uma vez lá dentro. A diferença de temperatura também é notória.

Os chãos estão atapetados com alcatifas e em várias deles repousam instrumentos musicais, a maior parte deles, tambores. Encostadas ou penduradas nas paredes irregulares estão coloridas pinturas ortodoxas. Século XVI , esclareceu Salem, o meu guia magro de óculos escuros,vestido com uma t shirt branca, calças de ganga justas e uns desajustados sapatos pretos brilhantes. Sobre os ombros tinha um túnica branca. Enverga-a sempre que entrava numa igreja.

Em algumas igrejas, ao longo dessas paredes surgem altos relevos trabalhados. Os tectos são sustentados por colunas de várias formas e frequentemente também elas estão decoradas. Neles vêm-se arcos e abóbadas. Alguns ainda carregam em si, restos da pintura original, velha de séculos.
A unir todas estas igrejas estão túneis escuros, trilhos e degraus gastos, rasgados na rocha. Frequentemente tão estreitos e profundos que transmitem uma desagradável sensação de se estar numa trincheira e quase claustrofobia.


Quando entro e saio de uma igreja, enquanto percorro os túneis que não estão pensados para a minha altura, passo pelas varandas, enquanto subo e desço os trilhos deste complexo, o sentimento de espanto e incredulidade está sempre presente.
"Como planearam??"; Como fizeram??"; "Como conseguiram??"
E as lendas sobre os anjos, esses obreiros nocturnos de Lalibela, tão presentes naquilo que vou vendo à minha volta, vão conquistando o seu lugar, vão ganhando forma na minha mente:
"E porque não??..."






























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