Bolívia, Uyuni - o sal do sul ao sol

Colchani é a porta de entrada para quem visita o Salar de Uyuni.
É um povoado poeirento que nasce e morre ao longo de um minúsculo troço da estrada que liga Uyuni ao lago de sal.
Tem uma estação de comboios que já não é usada, uma igreja e uns quantos hotéis que parecem quase abandonados. O tempo de permanência em Colchani é escasso. Quem anda por aqui vem de Uyuni e é para lá que volta depois de regressar da planície de sal.

São seiscentos habitantes que vivem quase exclusivamente do sal e do artesanato que vendem ao turistas nos poucos minutos que aqui se mantêm.
As bancas perfilam-se alinhadas ao longo da rua. Vendem principalmente têxteis, pequenas peças de sal e alguma cerâmica. Óculos de sol e chapéus estão por todo lado.

Era exactamente isso que me interessava neste povoado salgado: uns óculos de sol porque tinha perdido os meus no Mercado das Bruxas em La Paz e um chapéu boliviano bem colorido. O primeiro porque precisava mesmo deles e o segundo para me proteger dos raios duros de sol no salar, para depois no regresso o pendurar na minha parede e recordar estes dias.
Ironicamente, alguns dias depois voltaria a perder os óculos em La Paz. Quanto ao chapéu, esse está no sítio planeado.


Estou a uma altitude muito razoável, a mais de 3600 metros. O vento frio faz enfunar o meu blusão que me mantém confortável a esta altitude. Olho em frente e fico ofuscado com a luminosidade que me rodeia. "Poderia ser neve".

A sua brancura é violenta. Brilha intensa e agressivamente. Os óculos escuros suavizam o seu impacto nos olhos.
O chão é texturado por um padrão infinito de polígonos deformados perfeitamente delimitados entre si. Quando o piso, ele soa a uma bolacha crocante: crepita e estala quando caminho sobre ele. 
O horizonte é plano, vasto. Vastíssimo. Uso o superlativo sem rodeios. Nada interrompe a minha visão. A linha do horizonte é tão longínqua que esta segue a curvatura da terra.

Agacho-me, raspo os dedos no chão que piso e provo-o.
Assim que as pontas deles tocam os meus lábios sinto de imediato uma sensação estranha, uma mordedura neles. Tenho a clara sensação que se encolhem, que se enrolam sobre eles próprios, como os tentáculos de um caracol quando tocados nas extremidades. Cuspo de imediato. Poderia ser neve, mas não é.
É sal. Puro sal. Tão branco como a neve.


Não muito longe de mim, três "saleros" - os homens que extraem o sal - com pás e picaretas, um camião e uma carrinha caixa-aberta, rasgam a superfície e extraindo sal e empilhando-o em montes de forma cónica. Estes montes são depois atirados à pá para dentro do camião. 
Todos os anos cerca de vinte e cinco toneladas de sal são manualmente extraídas desta planície e enviadas para Colchani, para serem processadas.
Estima-se que o salar contenha qualquer coisa como 10 mil milhões de toneladas de sal, entre outros minerais. O potássio, magnésio e lítio fazem parte dessa lista. E é este último elemento que é o mais interessante de todos para a Bolívia. De aspecto branco, chamam-lhe o petróleo branco e ouro branco. E é fácil perceber porquê.

O lítio é um dos principais componentes das baterias de telemóveis, tablets, câmaras de vídeo e fotográficas, computadores e baterias dos carros eléctricos. O rápido aumento da procura mundial, motivado principalmente pela mobilidade eléctrica. e a previsão de no muito curto prazo o seu consumo aumentar fortemente, e com ele aumenta o seu preço, despertou o apetite do governo boliviano pelo lítio. Bem mais de metade, talvez 70%, das reservas mundiais de lítio residem neste deserto de sal.
Há objectivos estatais para explorar e industrializar seriamente este gigantesco potencial mineiro e fonte de dinheiro. 

O impacto e as consequências ambientais de uma extracção em série não são conhecidas, nem estão avaliadas até ao momento: poluição, ruído, movimentos de máquinas, aumento da população. Para os ambientalistas e conservacionistas este desconhecimento é preocupante, porque para além da preservação de uma das paisagens mais fascinantes e surreais do planeta, incrivelmente existe vida na maior planície de sal do mundo.


Nas zonas onde a espessura desta epiderme salgada, que pode chegar a atingir dez metros de espessura, é mais baixa, apenas alguns centímetros de profundidade, o lago de salmoura que corre por baixo dela rompe-a e chega à superfície. Parece que ferve. A água saturada de sal borbulha e agita-se libertando espuma. Uma tabuleta simples diz-me o que preciso de saber: Ojos del Salar.
Estas fontes com um par de centímetros de altura, derramam salmoura ininterruptamente, interrompendo a harmonia branca da zona onde elas brotam. O tapete de polígonos de sal está desfeito. No lugar deles há um mini-lago com as colorações do minérios que existem no sub-solo: vermelho, castanho, tímidos amarelos e um esbranquiçado que se confunde com o sal.


Os guias pegam no grupo que partilham os dois jipes e partem em direcção ao horizonte. Trilhos marcados pela borracha negra dos pneus que enegrecem indelevelmente o branco salgado, mostram o caminho a seguir.
Sinto o solavanco do jipe a mergulhar em direcção a este mar de sal e ao ser inundado por esta vertigem branca iluminada pelo sol, lembro-me de um extraordinário poema do português, e depois naturalizado angolano, Ruy Duarte de Carvalho: O Sul.
Sem usar um único verbo, Ruy joga maravilhosamente com as palavras sol, sul e sal, descrevendo, talvez sem saber, as vidas de quem trabalha neste ambiente surreal.


O Sul

O sol o sul o sal
as mãos de alguém ao sol
o sal do sul ao sol
o sol em mãos do sul
e mãos de sal ao sol

O sal do sul em mãos de sol
e mãos de sul ao sol

um sol de sal ao sul
o sol ao sul
o sal ao sol
o sal o sol
e mãos de sul sem sol nem sal 

Para quando enfim amor
no sul ao sol
uma mão cheia de sal?










Comentários