Lalibela, Etiópia - a jóia da coroa de pedra

Do complexo de igrejas de Lalibela, uma é emblemática: a Bet Giyorgis.
A igreja dedicada ao patrono da Etiópia, São Jorge, é a mais elegante, a mais bonita e a mais espectacular. Está deslocada quase duzentos metros das igrejas que constituem o grupo norte, a Jerusalém terrestre. Foi a última a ser construída, com a conclusão a ocorrer no século XIII,  já após a morte do rei. É a única das igrejas que não está protegida pelos toldos acastanhados da UNESCO. 
Agora tem a palavra a lenda.

Quando o rei Lalibela, estava a acabar a construção das igrejas monolíticas, São Jorge ouviu dizer que nenhuma das igrejas esculpidas até ao momento lhe tinha sido dedicada.

Aborrecido e irritado com esse rumor, montando um belo cavalo branco, encontrou-se com Lalibela e perguntou-lhe porque é que existindo igrejas dedicadas a santos, anjos e a outros membros relevantes da religião cristã, não havia uma igreja com o nome dele, especialmente sendo ele o patrono da Etiópia.
O rei reconheceu o seu erro e prometeu-lhe que iria construir a igreja mais bonita e espectacular de todas as que já estavam construídas.
São Jorge ficou satisfeito com a resposta, mas mesmo assim quis assegurar-se do resultado final, e foi ele próprio que supervisionou e deu indicações de como a sua igreja deveria ser erigida, a Bet Giyorgis.


"Aqui estou eu!!", pensei com uma incredulidade palpável na minha mente, ao mesmo tempo que apoiava as mãos nas ancas perante o que via abaixo de mim. Estava mesmo na beira de um imenso poço em forma quadrada. Quase ao nível dos meus pés, tinha o tecto de uma igreja em forma de cruz grega escavada na pedra que descia quinze metros na vertical. Assim mesmo, abruptamente.

As fachadas de Bet Gyorgis são de um rosado evidente e característico da rocha onde foi esculpida. Nas faces mais protegidas do sol, há zonas onde um amarelo peculiar, causado por um líquen que subsiste na rocha, se derrama irregularmente sobre o rosa da pedra acentuado-lhe o mistério e texturando a sua forma enigmática. O topo está decorado. Seguindo o contorno exterior, e uma dentro da outra, estão outras duas cruzes em alto-relevo.

Não há pilares a apoiá-la ou a suportar o seu peso.
Com o dedo em riste, Salem fez notar que o tecto tinha dois metros de espessura de rocha.
E deslocando o dedo no ar, apontando bem para um dos cantos do fundo do poço, onde a gigantesca cruz de pedra estava implantada, mais parecia plantada, estavam razoavelmente visíveis no solo, uns buracos alinhados em fila e ao lado uns dos outros:
"Ali, estão as marcas das patas do cavalo de São Jorge", logo de seguida Salem afirmou:
"Observem. Mesmo à frente delas, escavada no chão está uma pia baptismal que ainda hoje é usada".

Fascina-me sempre, saber que algo que foi pensado, concebido, há oitocentos ou novecentos anos ainda mantém o seu propósito, o seu uso original.
Mas também reparei que essa mesma pia baptismal estava cheia de lodo esverdeado e com plantas a crescer lá dentro...


O pequeno grupo seguiu o guia. Desceu-se por uns degraus gastos e quase perfeitamente alisados. Caminha-se por um trilho estreito e chegamos à base da Igreja de São Jorge. A flanquear a igreja estão as quatro paredes do poço quadrado que a acolhe.
As suas paredes ganham uma dimensão extra quando olhadas de baixo para cima. As sensações de isolamento no tempo e no espaço, a estranheza da sensação de descida às profundezas da terra, uma regressão no tempo de centenas de séculos, a uma época que não conseguimos compreender plenamente, entra fortemente dentro de mim.

Descalço, subo os degraus de acesso à igreja. Sinto o seu contacto nos meus pés e entro lentamente. De novo admiro a mais valia da simplicidade do seu interior, também em forma de cruz grega. É alta, tem doze, treze metros de altura. O espaço é estreito e por vezes baixo.
Penso: - "Pobre cavalo. Não deve ter sido fácil para ele movimentar-se aqui dentro."
Está dividido em alas e câmaras. A luz é intensa quando entra pelas janelas. mas suaviza-se e desmaia à medida que ela se dispersa pelo interior. Está atapetada. Numa câmara bastante apertada vejo tambores deitados no chão ao lado de várias bengalas. Uma pintura do século XVI mostra São Jorge a derrotar o dragão. Arcos e abóbadas têm cruzes talhadas.

Dois padres de túnicas brancas estão sentados em baixos bancos de madeira, atentos às movimentações. Um deles, o que está sentado junto à pintura de São Jorge, sorri para mim e levanta a mão direita com o dedo anelar cruzado com o polegar e desenha uma cruz no ar.
Salem aproxima-se e junto ao meu ouvido, diz: "Acabaste de ser abençoado!".
Então, pega na minha mão e dando uma lição improvisada sobre o cristianismo ortodoxo, reproduz o gesto do padre tocando em cada um dos dedos da minha mão, e explica:
"O dedo indicador na vertical desenha um I, o dedo do meio, que está curvo forma um C, o anelar cruzado com o polegar faz um X e o mindinho curvo forma outro C. São as letras ICXC."
Em jeito de conclusão, Salem pergunta:
-  "Sabes o que significa?"
Discretamente abanei a cabeça.
- "A abreviatura do nome de Jesus Cristo em grego"
Olhei para o padre e sorri para ele. Ele devolveu o sorriso e assentiu com a cabeça.













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