a D. Celeste, de Cabeça

Subiu devagar os quatro degraus da Rua da Ponte. Em cada degrau pousava os dois pés simultaneamente, fazia uma pausa e avançava para o degrau seguinte.
No topo, baixou a cabeça e inspirou e expirou profundamente. Estava cansada.
Frágil, com um cajado na mão. Tinha cabelo grisalho e rosto redondo, não muito expressivo, nem muito marcado pelo agreste tempo serrano feito de extremos. O sorriso era tímido e afável.
Nos ombros carregava uma saca de serapilheira branca. Pela forma da saca, pareceu-me que um balde de plástico, vazio e sem tampa, estava lá dentro. Parecia ser leve. Quis ajudá-la mas não deixou.


D. Celeste vive em Cabeça, uma aldeia de montanha, parte dela em xisto, encaixada num dos incontáveis morros da Serra da Estrela, não muito distante de Loriga, concelho de Seia.
Quando a encontrei, tinha sessenta e dois anos.
Tem uma história igual a inúmeras outras pessoas que vivem nestas aldeias.
Tinha vinte e seis anos quando veio para Cabeça. Casou e teve um filho.
Por falta de perspectivas, o filho emigrou para o Luxemburgo. Ele chegaria na semana seguinte à nossa conversa, para passar o mês de Agosto na aldeia.
O filho tentou tirá-la da aldeia mas não aceitou. Não quis sair do seu buraco. Justificou determinadamente a decisão: “Esta terra viu-me nascer e também me há-de comer.”

D. Celeste tinha assistido à sangria da população. A aldeia já tinha conhecido melhores dias.
Atingiu o número máximo de habitantes, que rondava os quinhentos e trinta, no início da década de trinta. Na década de setenta, dez anos depois da electrificação da aldeia, que a população começou a declinar cada vez mais.
As intensas florestações que proliferaram nos anos setenta para satisfazer a voracidade da industria da pasta de papel, sufocaram as periferias de boa parte das aldeias de montanha e roubaram preciosos terrenos de pastoreio que os pastores precisavam para alimentar o gado caprino.
Desde sempre que a pastorícia e a agricultura de subsistência garantiam a sobrevivência das populações das aldeias de montanha. Com o desaparecimento da pastorícia, com os difíceis acessos, que nunca permitiram o surgimento de uma rede sólida de transportes públicos, a industria e os serviços se implantassem nestas terras, a emigração e imigração foi a única solução para garantir fontes de rendimentos. Até aos dias de hoje, estes motivos estão ainda presentes.

Sabia portanto de antemão a resposta à minha pergunta:
“O que se passou para sair tanta gente da aldeia?”
“Não há pastores, não há emprego, não há nada para fazer aqui.”
D. Celeste subia lentamente a estreita ladeira que passava pela Junta de Freguesia, recentemente restaurada e protegeu-se do sol numa sombra que a parede de xisto de uma casa degradada oferecia. Parou, encostou o corpo à parede e olhando para mim, repetiu, desta vez soando a protesto: 
“Não há nada para fazer aqui. Nem filhos fazem!!”
“Então do que a D. Celeste e o seu marido vive? Do pastoreio? De têxteis?”
“Dantes sim. Havia muitas cabras e ovelhas. E fábricas de tecidos. Agora não. O meu marido anda lá em cima com a pouca tralha que temos.”
A tralha, eram as ovelhas e cabras que o casal tinha.
“Tiramos pouca coisa da terra. Mas também precisamos de pouco para viver. Já estamos velhos e as pernas doem-me.”
“E agora há muita gente a viver na aldeia?"
“Não. Talvez umas cento e vinte pessoas, ou mais. Mas agora há quem alugue e compre casas aqui para depois as alugar a pessoas de fora, como o senhor."
A dona Celeste continuou:
"Olhe, devia vir cá no Natal. Chamam-lhe Aldeia Natal. Aparece muita gente de fora da aldeia.”
“Vêem pessoas de todo o lado para montarem as suas bancas e venderem as suas coisinhas aqui. Depois vão-se embora de novo.”
“E o que vendem??”
“Sei lá, o que elas quiserem! Quase tudo coisas para comer e beber.”
“Se eu viesse aqui para vender comida vegetariana, conseguia?”
“Pode tentar...” – o tom da resposta revelou uma clara descrença no resultado final.
“E o senhor, vem de onde?
“Venho de Lisboa.”
"Conhece o Sr Doutor Almeida Santos?"
"O político do PS que morreu no ano passado?"
"Esse mesmo. Era cá da aldeia. Nasceu aqui e trabalhava em Lisboa"
"Não sabia que ele era daqui."
“Era sim! E o senhor que vem de tão longe, o que veio cá fazer??”
“Vim conhecê-la, D. Celeste.”

Subiu lentamente o que sobrava da ladeira de xisto, chegou ao largo da Malhada onde está a igreja da Divina Pastora, descansou de novo, depois virou para a direita e entrou no café Dias.


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