Potosi, Bolívia - a Comedora de Homens II



São cerca de seiscentas minas, num total estimado de mais de vinte mil túneis abertos em todo o interior da imponente montanha de 4800 metros que domina a paisagem de Potosi.
A história diz que tudo começou quando em 1545, um indígena - consta que se chamava Diego Huallpa - ao passar uma noite, à procura de um lama, na montanha, acendeu uma fogueira para se aquecer e por baixo dela a prata começou a fundir. Na manhã seguinte Diego reparou que havia prata entre os restos frios da sua fogueira. Desde então que os mineiros não pararam de a explorar. O próprio Diego se tornaria um deles.

Vivem-se tempos medievais no interior do Cerro Potosi. Os equipamentos que usam são quase os mesmos desde o século XVI: escadas de madeira, martelos, pás, picaretas e ponteiras de aço.
A dinamite for introduzida no final do século XVII, talvez em 1670. É no inicio do século XX que os carris e vagões começam a entrar na mina. Mas até chegarem até estes, o mineiros carregam nas suas costas enormes e pesados sacos cheios de pedra partida.
O ar não é renovado e são os túneis abertos à superfície que conduzem o ar até aos mineiros. 
Apesar de existirem martelos pneumáticos, estes pouco são utilizados por a rede de ar comprimido no interior das minhas ser muito pequena. E nos raros sítios onde a electricidade chega, a electrocussão não é rara.

As suas casas são baixas e toscas. Adivinha-se que o seu conforto seja quase nulo. À volta delas é o caos de ferramentas, carris, vagões. Chapinha-se na lama.
Não têm segurança social, seguros de saúde ou qualquer tipo de subsídios de doença, desemprego ou morte. Não existe inspecção de trabalho, regulamentações de segurança.
A realidade deles é única e exclusivamente a montanha, as minas e o que extraem delas. E não há outra que conheçam ou que esteja à espera deles.
Talvez, para alguns, como Daniel, as visitas guiadas sejam a única saída possível. E uma forma de suavizar as condições dos mineiros.


À entrada da boca da Comedora de Homens, Daniel tinha dado um aviso em tom sério:
- Estejam atentos aos sons dentro da galeria. Se ouvirem sons metálicos nos carris, se os sentirem a vibrar, a brilhar, encostem-se de imediato às paredes. São os mineiros a empurrarem os vagões cá para fora a trazerem equipamentos e despejar entulho do interior das galerias onde estão a trabalhar.
Fez um segundo aviso: - Por eles vezes gritam. Mas nem sempre o fazem.
Durante uns segundos fixou os olhos em nós, inculcando em cada um a importância do que tinha dito.



Daniel caminha rapidamente. Tenho quase que correr atrás dele. Umas dezenas de metros depois a luz natural desapareceu. O ar torna-se denso e pesado. Os frontais na frente dos capacetes rasgavam apenas umas ligeiras fatias na densa negridão. Cada grão de poeira no ar ficava iluminado por ele. Caminho curvado devido ao tecto baixo da galeria. O capacete torna-me mais alto do que sou. Bato frequentemente em vigas, tubagens e na rochas mais salientes de um tecto escavado de forma irregular e imprevisível. Mas sem ele...
Quando voltasse a ver a luz do dia, teria uma dor de pescoço enorme devido ao compromisso que tive de encontrar entre andar curvado e simultaneamente ter que olhar em frente.

Esta galeria há muito que está explorada e esgotada. Chapinho nela. Está enlameada e sinto a sucção da lama a prender os meus pés. Nas paredes correm tubagens: ar comprimido e água. Escorre água das paredes e ocasionalmente esta estão tingidas de um vermelho intenso. - "O que é esta cor??"
Daniel esclarece: "São os óxidos dos minerais que constituem a rocha." Em antecipação acrescenta outra informação: "Também podem ver laivos amarelos na superfície da rocha. Nesse caso não são óxidos. São cristais de enxofre."

Não demora muito para que uma luz redonda e muito brilhante - tudo brilha exageradamente na escuridão de um mina - surja no fundo da galeria. Ao inicio parecia fixa, mas depois percebo que não, pelo contrário. Os carris vibram e um som metálico ecoa na distância. Daniel este um braço para o lado e encostamo-nos às paredes. Segundos depois, um mineiro passa a correr empurrando um vagão com picaretas e martelos pneumáticos no seu interior, produzindo um ruído ensurdecedor, sem o mínimo sinal de abrandamento. São sempre os mais novos e os que estão há pouco tempo na mina que os empurram. Vazios ou cheios.


As crenças, as superstições e respectivos rituais nascem nos sítios, nos locais onde mais nos sentimos inseguros, menos protegidos, onde aquilo que somos capazes de controlar nos ultrapassa. Quando nos sentimos no papel de presas do acaso. Então depositamos na mão de entidades mais elevadas, mais poderosas, mais capazes que nós, os nossos destinos, a nossa sorte, o azar, e no limite, a nossa própria sobrevivência. Minas são o lugar ideal para que estas superstições surjam e sejam levadas muito a sério. Por mim inclusive.

O ex-mineiro não nos leva de imediato para as galerias mais profundas. Em vez disso caminhamos por um túnel que termina numa galeria sem saída. Estreita, baixa, abobadada e com bancos talhados na pedra. Está vazia. No chão há uma quantidade imensa de folhas de coca, várias garrafas de álcool vazias e outras meio cheias no chão e uma quantidade elevada de beatas. Encostada à parede está uma estátua negra. O impacto é grande. Não é algo que estivesse à espera - um diabo à escala humana. É uma figura sinistra: cornos, uma barba pontiaguda no queixo, os olhos brilham e tem um falo erecto. O corpo está coberto por fitas coloridas e por aquilo que está caído no chão. Chama-se El Tio. Desde o século XVI que eles existem e estão espalhados por todo o interior da montanha. São os senhores do submundo, os regentes do destino dos mineiros. Vêm e sabem tudo. É neles que os mineiros depositam a sua vida, a sua sorte e a sua fortuna.
O que vejo no chão e que cobre o diabo são oferendas.
Daniel começa o ritual: murmura umas frases - soaram a uma oração - coloca folhas de coca a seus pés, acende um cigarro que retira de um maço que está dentro do seu casaco e coloca-o na boca do diabo. De seguida verte álcool no falo, nas mão, joelhos e pés. Explica: "São as nossas oferendas para agradar o Tio, saciá-lo e obtermos a sua protecção. As oferendas nas mãos, joelhos e pés, pedimos a sua ajuda para não nos magoarmos ou morrermos. O que depositei no falo é a pedir que nos favoreça a encontrar um veio rico que nos traga prosperidade e bem estar."
"Como estão aqui dentro da mina connosco pedi igualmente a vossa protecção. Agora retribuem e pedem os favores dele para mim."
Sinto um temor estranho e profundo dentro de mim quando repito os passos pela ordem que ele fez e seguindo as suas instruções. Estou a dirigir-me a um diabo, a solicitar a sua protecção, num dos ambientes mais perigosos onde estive até agora.
Finaliza-se tudo com uma rodada de álcool por entre nós. Atrevo-me a uma golada que me faz engasgar e depois a pequena garrada de plástico é atirada para o chão, juntando-se às outras.


É sob os olhos de El Tio que Daniel traça um quadro negro da vida dos mineiros, a vida que já foi dele:
- "As minas matam sempre. Se não é no imediato, é a prazo. Se não os mata directamente, mata-os indirectamente. Se não são os acidentes, os desmoronamentos aqui dentro, são as suas doenças lá fora." Pergunto: "Que tipo de doenças?"
O antigo mineiro tira o capacete da cabeça, coloca-o sobre os joelhos e enumera-os com os dedos:
- "Asma, silicose, bronquites, cancros, pneumonias e cirroses. No fundo são as mesmas de há quase quinhentos anos, quando as minas foram fundadas."
As quatro primeiras resultam da inalação permanente das poeiras que resultam da exploração mineira numa atmosfera saturada de pó de pedra e dos minerais tóxicos que elas contêm. As pneumonias são causadas não só pelas poeiras mas pelas grandes diferenças de temperatura do interior das minas (podem rondar os 40ºc) para o exterior. Mas... cirroses??
- "É por causa do álcool que bebem. No fim uma semana de trabalho e por terem sobrevivido à mina, os trabalhadores embebedam-se constantemente durante o fim de semana. Depois é preciso somar a grande quantidade que bebem ao longos dos outros dias. Sem esquecer que o que bebem tem 96% teor de álcool".
Pensei no conteúdo dos meus sacos. Tinha várias garrafas dele.
- "E qual a esperança média de vida?", pergunto.
- "Com sorte talvez cinquenta anos."
Muito mais baixo do que pensava. Tinha apontado para os sessenta, sessenta e cinco.
Quase perguntei qual era a idade do guia. Aparentava ter os cinquenta. Como se sentiria ao saber que estava no limiar da média?? Travei a pergunta.
- "Um mineiro se não morrer num acidente no interior da mina, passa trinta anos dentro da montanha." Reflicto no que ouvi: "Mais de metade das suas vidas."
Daniel acende o terceiro cigarro desde que estávamos naquele buraco sem saída, em frente ao Tio.
- "Existem miúdos com onze e quatorze anos a trabalharam nas minas. Ninguém sabe ao certo quantos são, mas garantidamente bem mais de um milhar.".
Foi um duplo choque para mim. Primeiro pela idade, o segundo pela quantidade.
- "Há pais e filhos a trabalharem nas galerias. As mulheres não garimpam. São cozinheiras ou fazem pequenos trabalhos nas cooperativas."
- "O que os leva até aqui? O que procuram em Cerro Rico?"
- "O desespero do desemprego. A procura de trabalho, uma forma de sustentar a família. Encontram-no aqui mas morrem nele e por ele."
Finaliza de forma dramática: - "E morrem cedo."
Faço um meneio de cabeça em jeito de vénia ao diabo, hesito um pouco antes de lhe virar as costas e saio atrás de Daniel.


As galerias sucedem-se rapidamente - esquerda, direita, para cima, para baixo. Um constante alternar de direcções como um baralho de cartas baralhado por um mágico. Perco a noção onde estou. Tremo perante a possibilidade de me perder neste labirinto poeirento e negro.
Há galerias grandes e pequenas. Muitas estão escoradas com barrotes de madeira para evitar desabamentos. Passo por túneis tão baixos que tenho de tirar o capacete e rastejar empurrando-o à minha frente. No fim o túnel abre-se numa exígua galeria que ainda está a ser aberta. Três mineiros trabalham utilizando martelos e escopros. Só dois têm frontal e nenhum usa máscara. Quando me vêm surgir a rastejar e a olhar para cima para eles, sorriem para mim divertidos.

Ao longo do tempo que passo dentro da Comedora de Homens, cruzo-me com dezenas de mineiros.
Quase nenhum fala espanhol, só a língua local, o quechua. Falar com eles é muito difícil. É através de Daniel que falo com um ou outro e apenas palavras de circunstância.

Todos têm corpos franzinos e poucos usam máscara.  As bocas estão inchadas e os dentes manchados pelo constante mascar das folhas de coca que os ajuda a suportar a fome, a sede, as dores e as temperaturas elevadas. O seu olhar é vazio. Tão mortiço e cinzento como as paredes que se empenham em desagregar.
Há homens a trabalhar em tronco nu. Outros descansam na reentrância de uma rocha escavada. Entre eles quase não há conversa. O barulho também não o permite. Tento ouvir os seus pensamentos. Ia jurar que não há pensamentos nas cabeças dos mineiros. Talvez um e apenas um: escavar, partir; escavar, partir.








A visita às profundezas do inferno acabou. Rapidamente tiro o capacete da cabeça e rodo o pescoço em todas as direcções possíveis fazendo-o estalar várias vezes.
O céu mantém-se meio fechado, mas existe luz e o ar é fresco, lavado. Sinto-o límpido e cristalino apesar de saber que não está.
Estive apenas um par de horas no interior da montanha. O que será, como será, estar, viver e trabalhar anos a fio neste ambiente claustrofóbico, repleto de poeiras, sem luz e de ar viciado? Está para além do que sou capaz de imaginar. Sinto um profundo respeito e admiração por estes homens. As minas não só lhes roí e leva apenas os seus corpos, também lhes esvazia a alma e rouba-lhes as ilusões e a esperança. E não apenas a de vida.

Caminho para a van. Estou desejoso de despir a roupa que me incomoda e as galochas que não suavizaram o piso agressivo das minas.
Deixo para trás os mineiros quem continuam modo automático a empurrar vagões para dentro e para fora da Comedora de Homens. Até que esta um dia desabe e reclame centenas ou milhares de vidas de uma só vez. Até que tal aconteça, vai-se alimentando, tal como o papo de uma galinha, de várias dezenas delas ao longo de um ano.








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