Petra, Jordânia - a senhora do Mosteiro


Foram os descendentes de Edom, a alcunha dada ao irmão gémeo de Jacó, Esaú, os primeiros, talvez em 1200 aC, a chegarem ao local onde actualmente se situa Petra.
No século VI aC, os edomitas viram o seu território conquistado pelos nabateus, uma tribo de árabes nómadas. Mas Petra não surge neste momento. Seriam necessários vários séculos para que esta tribo vinda da península do Sinai, evoluísse para uma sociedade organizada, sofisticada e tecnologicamente evoluída, se tornasse capaz de a erigir.

Com o passar do tempo, com as principais rotas de comércio a confluírem para Petra, os nabateus tornaram-se influentes. Demasiado influentes do ponto de vista do império romano.
Entre os anos 65 aC a 106 dC a convivência com os romanos foi complicada, alternando entre acordos de paz e conflitos. Em 106 dC, o reino nabateu e a sua incrível cidade foram anexados ao império romano. Petra atinge o seu auge com cerca de trinta mil a quarenta mil habitantes.

Se depois da tempestade vem a bonança, aqui a situação inverteu-se. As principais rotas comerciais deixaram de passar por Petra e deslocaram-se para Palmira, na Síria.
A agravar está o incremento e a importância das rotas comerciais marítimas entre os países da península arábica. A perda de riqueza e de influência da cidade é notória e acelerada. No quarto século depois de Cristo, os nabateus deixam a cidade e Petra cai no esquecimento do tempo e dos homens.

Em 1809, o explorador suíço Johannes Burckhardt, durante uma estadia em Malta, ao ouvir falar de uma cidade em ruínas perdida na Jordânia, ficou determinado em descobri-la.
Três anos depois quando viajava pelo médio oriente, ao falar com locais, o suíço recebe informações sobre a possível localização dessa cidade. Ainda nesse ano, 1812, disfarçado de árabe, conhecedor da cultura, religião e das suas leis, Johannes Burckhardt entra na cidade de Petra.
A 6 de Dezembro de 1985, Petra é considerada património mundial da humanidade. 


Deixo o Tesouro para trás, contornando-o pela esquerda. À minha frente desenrola-se a Rua das Fachadas. O Siq pode transmitir claustrofobia por ser tão fechado a quem nele caminha, mas a Rua das Fachadas abre-se à luz do dia. Impressiona pelo tamanho e pela beleza. 
É o engenho e a arte que estas fachadas exibem que a tornam notável. E o tempo: mais de dois mil anos passaram desde que esta cidade foi fundada, mais de dois mil anos passaram desde que os artesãos nabateus talharam na rocha a sua arte.
Praticamente todas as fachadas visíveis são túmulos. O que de antemão pode dar uma noção de necrópole, um lugar onde a presença da morte é importante e honrada, mas não. É o contrário. Durante séculos a cidade foi vibrante e bem sucedida, sendo um influente e importante espaço e interposto comercial.

Petra entra no seu apogeu no primeiro século depois de Cristo. Como seria ela nesta altura? 
De súbito vejo homens pendurados e agarrados à rocha a trabalhá-la manualmente. O martelar e o ruído da pedra a partir e a cair no chão deviam ser omnipresentes ao longo do dia todo. Os pintores estariam igualmente lá. As fachadas mostram intrincados motivos pintados - que o tempo fez desaparecer - com cores vivas e brilhantes.
Do ponto de vista destes artesãos tudo lá em baixo deve ser pequeno: as carroças, os estábulos, as casas, os mercados e os templos. As nuvens de poeira levantadas pela passagem da rotina não os deveria atingir.
Caminhar nas ruas deveria atribulado. Os gritos dos vendedores são estridentes e a azáfama grande e ruidosa. A pé ou a cavalo, os soldados de armaduras sujas, gastas e amassadas afastariam rudemente as pessoas; o clero não precisaria de fazer nada e a nobreza dificilmente seria vista. Vejo as bancas dos comerciantes repletas de têxteis, joalharia, marfim e cerâmica. Os aromas das especiarias, do incenso e mirra talvez fossem detectáveis entre o cheiro das fezes dos animais ao longo das ruas.
As bancas representariam todas as mercadorias que as diversas rotas vindas da Síria, Egipto, Pérsia e Arábia que confluíam para Petra nesta altura, traziam com elas.
Imagino o pó a inundar toda a vida da cidade. Na periferia dela, reinaria o caos com a imensa quantidade de tendas montadas e cavalos por todo lado.

A imponência e as dimensões dos túmulos variam com a importância e o status social do seu ocupante. Quatro túmulos - os túmulos reais - destacam-se: o Corinthian Tomb cuja fachada faz lembrar o Tesouro; o Palace Tomb, o mais imponente dos quatro e cuja fachada com três andares de altura decorados com colunas parece um palácio romano; o Silk Tomb cujo nome vem dos delicados laivos coloridos da pedra onde este foi talhado e o elegante Urn Tomb que parece ter um terraço assente em várias colunas.






Subir até eles e visitá-los não é fácil, o que se torna numa vantagem. Poucos o fazem e ver os seus interiores, apreciar os coloridos laivos da pedra talhada e a paisagem que se vê daqui, em silêncio é algo que deve ser bem aproveitado.
Partilho a visão altaneira e desobstruída com um guarda beduíno silencioso e de rosto fechado. Sento-me próximo mas não tenho sinais que este queira meter conversa com um estrangeiro.

O Anfiteatro romano que do solo mete respeito pelas dimensões, cá de cima quase se mimetiza totalmente com a rocha mãe. Sobre ele, o guia tinha passado previamente uma informação curiosa:
- "Apesar de ser um auditório romano e naturalmente ter todas as suas características arquitectónicas não foram os romanos que o construíram. O auditório foi erigido pelos nabateus, antes de os romanos chegarem a Petra. Tal como os elementos decorativos de influência grega e romana de El Kazneh, este auditório prova o quanto este povo era viajante, aberto e tolerante a novas culturas e capaz de as entender e assimilar." Estava-se no dealbar do cristianismo - sec I dC.





Na continuidade da Ruas das Fachadas surge a Estrada das Colunas que tinha visto do alto dos túmulos reais ao lado do guarda beduíno. Apenas algumas colunas sobrevivem aos dias de hoje. Esta longa estrada atravessa uma vasta área onde pulsava o coração comercial e social de Petra. Aqui os negócios e o comércio floresciam. Não se tem a verdadeira noção de como esta área estava organizada, qual a sua verdadeira dimensão.

A estrada termina num arco, onde dois infelizes jordanos trajados de guardas tentam a troco de alguns dólares, sem muito sucesso, convencer quem passa a tirar uma fotografia com eles, que faz de fronteira entre o que era comercial e corriqueiro do que era sagrado. A partir de aqui situam-se os templos.




Começo a pensar na tarefa intimidante que tenho pela frente. Subir cerca de oitocentos degraus, também eles talhados na rocha, para chegar a outros dos ícones de Petra: o monumental Al Deir, o famoso Mosteiro. Água. bastante água. Tinha sido a minha preocupação maior quando iniciei este segundo dia com este objectivo em mente. Para quem pensar em comprar água antes de subir que se prepare: os preços não são os mais simpáticos.
É sempre a subir. Sem dó nem piedade e para além da água é preciso determinação.
Vejo burros, cavalos e camelos em dificuldade carregarem anafados turistas, gente para quem falta a coragem e a determinação de subir e que prefere delegar nos estafados, chicoteados e tristes animais essa tarefa, esse esforço. Como se o calor, o cansaço e a sede não os afectasse. A irregularidade dos degraus, a sua lisura polida por milhões de pés ao ano, fá-los escorregar e quase cair enquanto obscenamente aqueles que os montam se riem das sua aflições. Frequentemente andam com as patas feridas das quedas e de roçarem nas rochas, a exaustão é bem visível neles.

Todos os condutores destes animais dirão que eles são bem tratados, que são vistos por veterinários, têm tempos de descanso definidos e que em caso de maus tratos, os próprios condutores podem ser denunciados. Mas de facto não são bem tratados e é aflitivo vê-los a trabalhar a toda velocidade. Quanto mais rápido cumprirem os seus percursos, mais depressa vão carregar outras largas dezenas de quilos nas suas costas. Não consigo deixar de sentir revolta desta gente, quer os que vão em cima deles, quer os que os exploram.



Até ao topo, a visão é de paisagem montanhosa e árida onde o ocre claramente predomina. O verde escasseia e o azul abunda. À medida que se sobe, os túmulos reais vão ficando visíveis. É no topo, quando se chega ao Mosteiro que se percebe o quanto vale a pena subir estas centenas de degraus.
O Mosteiro, que é um templo, é verdadeiramente imponente e impressiona. São cinquenta metros de altura e quarenta e cinco de largura completamente aninhados na rocha. O seu interior, uma câmara cujo acesso está vedado, não fica atrás relativamente à fachada. Quase um cubo perfeito com quinze por dez e por doze metros. A entrada tem oito metros de altura.

Ao descer cumpro uma promessa feita a uma vendedora de artesanato: na subida tinha negociado previamente o preço de um pequeno camelo de metal bastante estilizado que me tinha atraído bastante e prometi-lhe que no regresso o comprava.
Dezenas de metros abaixo paro para discutir o preço de uns lenços que também tinha fixado na subida para o Mosteiro. Acabo por perder o interesse neles, mas antes de ir embora a senhora pergunta-me se eu tinha algo para as dores de cabeça. Comigo anda sempre a minha farmácia de viagem e ofereço-lhe todos os meus comprimidos de paracetamol. Só quer um. Insisto que fique com eles mas recusa terminantemente. Com a mesma determinação que recusou, faz-me aceitar um íman que representa um mulher jordana, depositando-o na minha mão e com as suas duas mãos ela fecha a minha. Faz-me esperar mais um minuto. Fecha os olhos, junta as mãos - em concha como quem bebe água de uma fonte - ao nível do peito e intercede por mim numa breve oração a Alá.

Esta senhora, que por não lhe conhecer o nome chamo-lhe a Senhora do Mosteiro. Com a sua recusa em ficar com algo que lhe faria falta e principalmente com a sua oração, tornou-se uma das pessoas mais marcantes em muitos anos de viagens e um dos meus ícones de Petra.






Comentários

  1. Um lugar que parece surreal...
    Que a oração da Senhora do Mosteiro te proteja e te permita conhecer muitos mais lugares destes e que os possas relatar.

    ResponderEliminar
  2. Olá Pedro :-)

    Vim agradecer a tua afectuosa mensagem de parabéns por 'miosótis'. Fiquei muito sensibilizada, ainda para mais, não sabia de ti há algum tempo.
    Sempre tão bom 'rever' os amigos de longa data!

    Este teu post sobre Petra... que adoro - sem nunca ter lá ido, a não pela imaginação que a internet e os mass media nos permitem - veio complementar a 'viagem do pensamento', ao seguir-te, fervorosamente, nesta tua descrição, tão real, mesclada da espiritualidade que o local e a 'senhora do Mosteiro' nos permite.

    Beijinhos,

    ResponderEliminar

Enviar um comentário