Alexandria, Egipto - a velha meretriz



Alexandre III, de cognome o Grande, desde muito cedo que estava fadado para a grandeza. Com apenas treze anos, o seu pai - Filipe II, rei da Macedónia - contratou um dos maiores filósofos da história para o educar: Aristóteles. O filósofo manteve-se com ele até aos dezasseis anos. Nesta altura entra em guerra pela primeira vez. Aproveitando a ausência do rei do país, os trácios tentam tomar a Macedónia, Alexandre derrota-os. 
Aos vinte anos, em 336 aC, Alexandre herda o trono após o assassinato do seu pai. Até à sua morte, com trinta e três anos, devido a causas que ainda hoje permanecem nebulosas, estima-se que o macedónio, que contam as lendas foi quem cortou o nó de Górdio, terá fundado sete dezenas de cidades, emprestando o seu nome a duas dezenas delas. Sendo a egípcia a maior de entre todas.


Há um encantamento estranho nesta cidade que viu nascer e morrer a rainha do Egipto, a amante de Júlio César e mulher de Marco António, Cleópatra.
Alexandria é decadente, abandonada e no entanto atraente como uma mulher que não sendo particularmente bonita nos cativa e seduz.

É convidativa e sofisticada ao longo da marginal, a Corniche, que contorna o Mediterrâneo. Oscila entre dois marcos históricos: a maior biblioteca do mundo, a Biblioteca de Alexandria e a cidadela de Qaitbay. A primeira, de arquitectura futurista e moderna, recria e homenageia a famosa biblioteca de Alexandria que ardeu no ano 48 aC aquando do cerco de Júlio César à cidade.
Do lado oposto à biblioteca exuberante, a abarrotar de história e seis séculos mais velha que esta, está a cidadela de Qaitbay. Destinada a proteger Alexandria dos cruzados, continuou a fazê-lo contras as invasões otomanas e cai às mãos de Napoleão no cair do pano do século XVIII. Estava a começar o século XIX e é a vez dos britânicos, aliados aos otomanos, derrotarem os franceses e entrarem em Alexandria. Em 1882, a cidadela participa na guerra anglo-egípcia. Após um severo bombardeamento britânico, fica fortemente danificada, sofrendo obras de restauração nos anos oitenta do século passado.

Enquanto subia e descia as escadas do forte, estava presente no meu espírito algo bem mais mítico que a sua história militar.
Qaitbay foi construído com os blocos de pedra que foram usados na construção do farol de Alexandria. Considerado uma das oito maravilhas do mundo antigo, este farol, construído em 279 antes de Cristo, na ilha de Pharos com blocos de granito e mármore, teria quase 150 metros de altura e a sua luz seria visível a cerca de 50 quilómetros de distância. A luz da sua chama resultaria de estrume seco a arder, ampliada por espelhos de bronze. Terá sido em 1375 que um terramoto ao sacudir a ilha o terá destruído. Com as suas ruínas é erigida em 1480, a cidadela por onde agora caminhava, onde sentia o aroma da maresia e os gatos espreitavam a chegada de uma benesse dos pescadores plantados no paredão, vinda dentro dos seus baldes.




Se se romper esta crosta de esplanadas e cafés, do KFC, das agências de viagem  que promovem todos os destinos turísticos do Egipto, lojas de roupas e penetrar nas ruelas, entra-se no miolo da cidade. Encara-se de frente a sua face, aquilo que ela é genuinamente: rude, em estado bruto, sem complacências para quem a explora e visita.

As ruas são sujas, frequentemente não pavimentadas ou mal pavimentadas, prédios de fachadas mal cuidadas ou abandonados e em ruínas. O dia a dia, aqui nestas ruelas e becos de aspecto pardieiro, parece ronceiro mas não, explana-se por todo o lado e à vista de todos. É vibrante e surpreendentemente colorido para uma cidade que se apresentou abafada por um cinza doentio.
Nos cafés de aspecto taciturno, sentados na rua, homens placidamente fumam narguilé, rodeados de gatos - os muçulmanos tratam-nos bem. Vem de longe o gosto dos muçulmanos pelos gatos. O profeta Maomé tinha um afecto muito grande por eles. Dos vários gatos que tinha, o seu preferido chamava-se Muezza. Mas no que respeita aos próprios egípcios, o respeito pelos felinos recua muito mais no tempo, bem mais anterior que o surgimento do Islão, chega aos faraós. Bastet uma das deusas mais relevantes da mitologia egípcia é representada por um gato.






Apanho um eléctrico numa paragem completamente em ruínas. Um mendigo, aparentemente bêbado, sentado no que resta do pavimento cimentado da paragem é gozado por quem passa. Há quem o proteja.
O eléctrico chega. Apresenta sinais evidentes, não disfarçados, de uso intenso, pintado num cansado mas inquestionável castanho escuro. O seu interior é espartano e sujo. O revisor, super simpático e divertido, está num pequeno guichet aberto mesmo no meio da carruagem. Os sons metálicos dos carris inundam o interior poeirento. A curiosidade e a atenção de quem está e quem entra fica presa no ocidental que vai ali com eles. Pretendo ir até ao fim da linha e ter um vislumbre daquilo que usualmente não é procurado, o centro antigo de Alexandria.

A custo consigo abrir a janela perra e cheia de sarro incrustado no vidro como um crosta agarrada a uma ferida. O eléctrico desfila lentamente em ruas estreitas. Passa rente às lojas e rente às pessoas. Não vejo glamour ou sofisticação. Não há neons, não há lojas bonitas, montras cuidadas, superfícies envidraçadas imaculadas, grandes supermercados ou centros comerciais. Nestas ruas, Alexandria é o que é - nada cosmopolita, muito mundana e bastante pragmática. Em pouco menos de uma hora, que me deixei atrair pela cidade, por esta sua face decadente e abandonada.












- "É uma velha meretriz" - pensei eu. "Já teve os seus dias de grandiosidade, de glória e opulência. Já foi procurada e muito desejada. Já lutaram por ela. Gregos, ingleses, turcos, arménios, franceses, cristãos, muçulmanos deixaram nela as suas marcas. Agora está cansada. A sua face está enrugada, o cabelo desgrenhado e o corpo cheio de cicatrizes de carregar dois e mil e trezentos anos história. Os olhos brilham mas estão carregados de profundas olheiras, estão indiferentes à modernidade descaracterizada e desenfreada da periferia, as suas mãos caídas estão sem vontade de saudar os turistas que vão assaltando a sua história."


Fim de tarde.
Fecho o dia sentado no murete da Corniche com os pés virados para o Mediterrâneo. Assisto a um belo e prolongado pôr-do-sol no mar. Oiço o ronronar suave do mar e atrás de mim, tenho o rugir do trânsito intenso a fluir na marginal.
Três homens passeiam-se de um lado para o outro com grandes bandeiras anunciando a todos os que aqui passam que são fãs do Al-Ahly. Hoje mesmo iria disputar-se o jogo agregador de todas as paixões do futebol egípcio: o clássico entre eternos os rivais Zamalek e Al-Ahly, ambos clubes do Cairo.

Com um copo de coca-cola pousado no murete, alheada ao que se passa à sua volta, uma jovem bonita, usando um lenço castanho com cornucópias de amarelos e castanhos escuros, escreve pensativamente qualquer coisa no telemóvel. Olho para a minha direita, onde a nova e sumptuosa biblioteca de Alexandria se encontra e completo a reflexão e o pensamento de algumas horas antes:

- "A Alexandria deste lado, da marginal que se alonga e contorna o Mediterrâneo, que cresce e se desenvolve, parece uma adolescente desorganizada que persegue o cheiro do euro e do dólar. Pula atrás do que é popular, do que se vende, do que é ocidental. Entre a jovem inconsequente e a meretriz velha e experiente, a escolha é fácil de fazer."





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