Varsóvia, Polónia - Stare Miasto, entre a destruição e a criação



Tenho cerca de seis horas úteis de escala em Varsóvia. Por voltas das 22.00h, um voo leva-me até Yerevan, capital da Arménia.
A escolha para "queimar" estas horas é obvia: Stare Miasto, a Cidade Velha de Varsóvia.
O balcão das informações do aeroporto diz para apanhar o autocarro 175 e para sair na última paragem do mesmo. A paragem fica a cerca de duzentos metros da entrada da cidade. Dependendo do trânsito, necessito cerca de 30 a 40 minutos para chegar ao destino. Compro o bilhete no próprio balcão das informações. 

Fora do aeroporto, um horário pendurado num poste cinzento metálico, diz que a frequência de partida ao longo do dia, varia entre os quinze e os trinta minutos. 

Mesmo sabendo que é a última paragem a que me interessa, tento confirmar isso junto das pessoas que vão entrando - algo difícil de conseguir porque ninguém fala inglês. 
O autocarro tem wifi. Uso o Google Tradutor para confirmar o significado da última paragem do mapa do percurso, que está por cima da janela do autocarro - PL. Piłsudskiego.

Saio do autocarro, mas ainda preciso de um última informação. Encontro alguém que fala inglês: "Como vou para a Old Town?" Recebo umas curtas instruções de volta: "Viras à direita, depois à esquerda e estás lá."



Varsóvia está profundamente marcada por dois eventos dificilmente mais opostos: a criatividade da música do compositor e pianista Chopin que nasceu nesta cidade e deu o nome ao aeroporto, e a força arrasadora, destrutiva da Segunda Guerra Mundial que praticamente a transformou em pó.
Quando em 1939, a Alemanha Nazi invadiu a Polónia dando origem à Segunda Grande Guerra, efectuou um dos maiores raides aéreos da história até à altura. Seis anos depois, no fim do conflito, cerca de 90% da cidade estava devastada e a população reduzida a 10 a 12% do milhão e meio de habitantes iniciais.
Nesse mesmo ano, 1945, a Polónia toma a firme decisão de limpar a poeira e reconstruir a Cidade Velha de Varsóvia. Edifício a edifício, no mesmo sítio, com as mesmas cores e na traça original.
Utilizaram-se fotografias e, principalmente(!!), pinturas do pintor veneziano do século XVIII, Bernardo Belloto, mais conhecido por Canaleto. Na reconstrução da cidade são ainda aproveitados, e incorporados, secções e escombros dos edifícios originais.

Entro na cidade. Pelo ar, espalhada por auto-falantes escondidos, reconheço a inconfundível Valsa Minuto. Uma peça com secções muito rápidas, composta para piano solo por Chopin, no ano de 1846.
Caminho em direcção à Castle Square, a principal porta de entrada na Cidade Velha. Alguns bares e cafés fazem ouvir nas suas esplanadas outros géneros musicais bem diferentes. É uma praça em forma triangular, dominada pelo Palácio Real do lado direito. Ao centro, um pedestal de vinte e dois metros de altura encimada por uma estátua do rei Sigismundo III, honra o monarca que em 1596 fez de Varsóvia a capital da Polónia. Daqui partem várias ruas estreitas e curtas que se ligam e intersectam.



Invisto o meu tempo a percorrer estas ruas. Como toda a Stare Miasto, estão bem cuidadas, floridas e convidativas. Bares, restaurantes, galerias de arte e lojas de artesanato são em número abundante.
Estão cheias de gente e a música vai fluindo um pouco por todo o lado.
Calcorreio-as sem pressa e sem destino. Procuro uma pequena peça de artesanato para levar para casa. Nada do que as lojas de artesanato têm para oferecer me atraem: canecas, caixas de madeira, porta-chaves, ímans, bonecas vestidas com mau gosto, colheres de pau com decalques colados tão maus e foleiros quanto os trajes das bonecas e as peças de âmbar com insectos no interior. Tudo está nos antípodas do que procuro. Os meus passos perdidos levam-me até às muralhas de cor vermelha do século XVI que protegiam a cidade. Onde elas se encontram, formando uma elegante curva, encontro o que procuro.






Do lado esquerdo, um velhote de poucas palavras, aspecto duro e algo antipático, tem encostado na parede um tosco mostruário com vários rostos feitos de cascas de árvores, todos esculpidos por ele. Tenho várias peças assim em minha casa. Negoceio com Michal. Baixo 10 zlotys ao preço de um rosto que faz lembrar o ent Treebeard. O tal que carrega nos seus ombros os dois hobits, enquanto este caminha para a batalha que os ent vão travar contra Saruman.

O entrecruzar das ruelas conduz-me à segunda grande praça da Cidade Velha: a Praça do Mercado, onde o coração da Stare Miasto bate mais forte. Outra (mas discreta) estátua pontifica no seu centro: a Sereia de Varsóvia. A estátua está quase sufocada pelas pessoas que a rodeiam. Crianças brincam  apanham várias moedas num circulo de (parece ser) mármore amarelo onde a Sereia está centrada.
Ela conta uma história, uma lenda de lealdade e gratidão. Curiosamente tem associada a si a sereia de Copenhaga. Ela reza mais ou menos assim:

Duas sereias gémeas nadavam lado a lado ao longo do Mar Báltico. A certa altura decidiram separarem-se. Uma foi para Copenhaga e a outra rumou para a Polónia. A última chega a Varsóvia, nadando ao longo do rio Vistula. Gostou das pessoas, dos aromas libertados, da paisagem e decidiu ficar. Os dias passaram e os pescadores começaram perceber que algo andava a agitar as águas e os peixes que apanhavam eram libertados. Aborrecidos, tentaram apanhar a sereia mas quando a viram ficaram deslumbrados pela sua beleza e pelo canto mágico que esta cantou quando os viu. E deixaram-na ficar em paz no rio. No entanto esta paz não durou muito.
Um mercador que tinha ouvido falar na bela sereia de Varsóvia ficou interessado nela. Quando aqui chegou, ele conseguiu apanhá-la e prendeu-a. A sereia, ao ver-se presa começou a chorar. E chorou dolorosamente dias a fio. Os pescadores, tristes e perturbados com o seu longo choro, juntaram-se e conseguiram libertá-la. Agradecida pelo que fizeram por ela, a sereia promete que sempre que a cidade precisar ela estará presente. E a partir desse momento passou a usar um escudo e a empunhar uma espada, mostrando a todos o seu empenho na defesa da cidade.



Neste meu cirandar conheço o lado criativo da cidade e de toda a Polónia: o espantoso universo musical de Chopin e o seu percurso de vida.

Nascido em Março de 1810 arredores de Varsóvia, Fryderyk Franciszek Chopin morre em Paris com apenas 39 anos, em Outubro de 1849.  Em quinze lugares chave da cidade, existem outros tantos bancos multimédia onde se ouvem excertos de pouco mais de trinta segundos de uma peça de Chopin. Em cada um, está gravado um código QR que quando lido nos fornece mais explicações e dados da sua vida. Num granito preto e bem polido, estes bancos têm um mapa que mostra onde estão colocados os restantes. É um trilho frugal mas cheio de suculentas migalhas musicais que vale a pena ir debicando, e como grão a grão enche a galinha o papo, no fim dele, a incrível obra de Chopin fica bem impregnada em nós.

O que está colocado em frente à Igreja das Freiras da Visitação, toca durante cerca de quarenta e cinco segundos a peça Largo in E-flat major.
O código QR diz que era nesta igreja que Chopin ia à missa e dava concertos de órgão durante os seus anos de estudante. No seu interior está o órgão usado pelo polaco mais famoso do mundo. Não o pude ver porque a igreja estava fechada. Cá fora uma pequena exposição, segundo explicado mais tarde, contava a história de algumas mulheres que deram a sua vida pela Polónia durante a Segunda Guerra Mundial.




Regresso ao 175 e ao aeroporto. No rolar do autocarro, desta vez sentado, penso na Stare Miasto:
"É jovem e positiva. Um local de eleição para passar um fim de dia, trocar ideias com alguém, ler um livro, apreciar a excelente vodka polaca e "queimar" meia dúzia de horas enquanto se está em escala para outro destino.
Talvez não tenha estado em nenhum outro local onde história, guerra e música estejam tão profundamente interligados como na Cidade Velha de Varsóvia.


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