Guadramil, Portugal - mais cães que pessoas



Tenho uma enorme atracção por aquilo que fica congelado no tempo e no espaço. 
É quando o tempo passa, mas não arrasta consigo a modernização.
São momentos em que se pode perceber o presente, olhando em tempo real para o passado. É uma tomada de consciência plena do que somos, sabendo o que já fomos.
Assistir ao antigo, ao que é decadente, ao que é abandonado, torna-nos, se tivermos essa consciência, historiadores de nós próprios e do tempo que vivemos.

Assim é Guadramil. Uma aldeia transmontana perdida num canto do Parque Natural de Montesinho.
Um vívido quadro de uma época passada de décadas acumuladas, de vivências, das quais tal como os seus habitantes, são agora reminiscências difusas que se podem entrever num interior de uma casa através de uma janela meio aberta, porta entreaberta, ou anulando o reflexo de um vidro de uma janela que se acede através de escadas de pedra.


Estou a caminho de Rio de Onor. De repente a estrada como que se interrompe para traçar uma aldeia em duas: Guadramil.
O Sr João, habitante de Gimonde tinha dito no dia anterior que antes de chegar à aldeia de dupla nacionalidade, iria cruzar esta pequena aldeia.
Encosto a carrinha junto a uma fachada de uma casa que se abre para o largo da aldeia.




Silêncio. Não vejo ninguém. Não há cães ou gatos nas ruas, alpendres ou varandas.
"Até eles se foram embora."
Ocorre-me gritar: Ohhh da Casaaaaaaa!!! Sorrio perante a ideia mas contenho-a.

As casas são de xisto, mas o chão é pavimentado com paralelepípedos de calcário.
Mesmo com madeiras envelhecidas, algumas portas, algumas janelas estão cuidadas. Há floreiras que se vêem que são regadas regularmente e cortinas feitas a crochet para matar as horas infindáveis dos dias que se arrastam eternamente. Nota-se um genuíno carinho e preocupação nelas.
Guadramil está no triste, mas fascinante limbo que medeia o abandono, mas não a decadência, e a desertificação.

Há portas e janelas que estão fechadas com fechos de madeira toscos e arcaicos.
Definitivamente, a aldeia não cedeu à modernidade dos novos materiais, dos lacados artificiais e das fachadas de cores absurdas.
Subo ladeiras estreitas parcialmente forradas pelas ervas em direcção à igreja. Escondidas nas traseiras das casas há alfaias que estão já meio comidas por essas mesmas ervas e por heras, outras que parecem ter aspecto de uso recente.






Entre duas frinchas de uma porta que tinha ignorado na subida, sou saudado por um focinho que junto ao chão ladra para mim. Poucos minutos depois, um cão de pelagem preta com uma gravata de pêlo dourado que começava por debaixo do pescoço e se prolongava até à barriga, o primeiro ser vivo que avistei desde que cheguei à aldeia, cumprimentava-me pedindo festas. A cauda abanava tão rapidamente que quase se tornava difusa.

No filme Manobras da Casa Branca, há uma frase que é dita no início do filme que pergunta:
"Porque o cão abana a cauda? Porque ele é mais esperto que a cauda. Se a cauda fosse mais esperta era ela que abanava o cão."
Isto significa que por vezes as pequenas coisas adquirem uma importância que não devia ou que a nossa atenção é desviada de coisas maiores por pequenos detalhes.
Mas sempre que um cão vem até mim desta forma inevitavelmente esta frase assoma à memória.

Abro o trinco do portão de acesso ao recinto da Igreja Matriz São Vicente e entro. O branco da fachada apresenta falhas que mostram o cimento da construção. A encimar está um frontão em pedra com dois sinos. Rapidamente contorno o pequeno largo. A vista dá para o relevo do parque de Montesinho. Do lado esquerdo está uma débil ribeira, um lavadouro comunitário com vários tanques, algumas casas e pequenas hortas. A maior parte do casario situa-se do lado direito da estrada.




Fecho de novo o portão e no regresso à carrinha cruzo-me com um habitante que caminha ao longo do largo da aldeia. Um homem curvado de camisa branca com as mangas enroladas pouco acima dos punhos, chapéu preto e de calças cujo tecido cinzento não consigo identificar. Carrega um balde com uma trincha e uns panos lá dentro. Procuro a conversa e ele conta-me uma história igual a tantas outras ouvidas em outras tantas aldeias abandonadas e desertificadas:

- Bom dia. Chamo-me Pedro. O senhor vive aqui?
Ele pára e olha para mim. O rosto está encovado e macilento, os olhos não brilham. Parecem parados no tempo. A sua barba é rala e branca. O balde não deve estar pesado porque não o pousou no chão.
- Vivo, sim senhor.
- Há muito tempo?
- Desde sempre, senhor.
- Quantas pessoas vivem aqui na aldeia?
- Já não chegamos a vinte.
- As pessoas que vivem aqui como o senhor, que fazem?
- Cultivamos algumas coisas e pastoramos alguns animais. Pouca coisa.
- Não têm turismo ou casas de habitação?
- Não. Rio de Onor é que tem disso. Por aqui só andam miúdos com bicicletas, e os carros, esses vão todos para lá. Nem param aqui.
- Gostavam que começassem a parar, a visitar-vos?
- Olhe, nem sei. Talvez os novos, as crianças, voltassem e isso seria bom para todos. Mas o movimento, o barulho, já não seria tão bom para os que andam aqui há muitos anos. Talvez já seja tarde para os que aqui habitam.

Verdade. Os raros carros que passaram nos minutos que estive em Guadramil, não pararam aqui.
Foi precisamente por isso que fiz uma paragem nesta desértica aldeia comunitária. A ingenuidade, a pureza de um local é inversamente proporcional à sua procura.
No entanto, a estrada, que atravessa a aldeia e conduz a Rio de Onor, forçosamente obriga-os a passar por aqui. Em jeito de tirar dúvidas, quase desnecessariamente, uma tabuleta de madeira aponta a direcção para quem vai para a conhecida aldeia que partilha dois países.

Fico com a sensação que para este senhor a conversa começava a tornar-se um frete e abrevio-a:
- Qual a sua graça?
- José.
- Sr José, gostava muito de lhe tirar uma fotografia, posso?
José, olha para o chão, faz um compasso de espera e depois responde:
- Não, não. Não estou vestido para isso, além que sou velho e ninguém gosta de olhar para mim.

Não insisto. Já ouvi este argumento várias vezes. Se eles soubessem o quanto são interessantes e atraentes precisamente por serem velhos!
Quando arranco para Rio de Onor, alguém no número 29 vem ver o que se passa.

"Hoje vi mais cães que pessoas. O dobro."






Comentários

  1. Que texto tão genuíno! Gostei muito da forma como usou as palavras tão cruas. Quando estive em Guadramil há 2 meses, também parei para contemplar o silêncio. Boas viagens!

    ResponderEliminar
  2. Só agora li este texto e adorei! Também estive em Guadramil em Janeiro de 2020. Parei, visitei e gostei imenso. A mais bonita e genuína aldeia que vi em todo o parque de Montesinho. Matar saudades de ver uma aldeia à antiga, como era a minha nos anos 70/80... Hei-de voltar lá, seguramente!

    ResponderEliminar

Enviar um comentário