Khiva, Uzbequistão - pensando em Mussogorsky

Existe uma peça do compositor russo Modest Mussorgsky que gosto particularmente - Quadros de Uma Exposição. A história por detrás desta obra é bem conhecida.
Foi composta um ano depois da morte de um pintor, amigo querido seu, Vicktor Hartmann. Em 1874, decorre em São Petersburgo uma retrospectiva da obra de Hartmann. Quando Mussorgosky a visita, as saudades, a emoção da perda do seu amigo assola-o e resolve transcrever musicalmente essa exposição chamando-lhe Quadros de Uma Exposição.
O objectivo da peça é precisamente transmitir a sensação de se caminhar na exposição e apreciar os quadros que vão aparecendo nela.
Exactamente o que senti em Khiva


Enquanto cidade muralhada, existe o dentro e o fora. Itchan Kala é a parte da cidade que se encontra dentro das muralhas e Dichon Kala a que se situa fora.
A pérola está dentro da ostra. Se fora das muralhas, Khiva não se distingue de tantas outras cidades, é dentro de si própria, na Itchan Kala, que encontramos o tesouro: história em estado pura, a velha Khiva. São muralhas com dez metros de altura por cinco a seis metros de espessura em adobe com quatro entradas principais. Uma por cada ponto cardeal.
Aqui não há carros, apenas se circula a pé.




Percorro as ruas secundárias de Khiva, arrastando os pés e levantando a sua poeira. Tudo é tosco aqui. Ruas estreitas, ladeadas com casas em adobe com portas e janelas nem sempre cuidadas da melhor maneira, Não há sinais evidentes de modernidade, ocasionalmente vê-se uma parabólica. Quando em 1990 se tornou Património Mundial da Humanidade a Unesco proibiu alterações ao que já existia. Se estas acontecerem têm que ter a aprovação deste braço da ONU.
A compra e venda de casas não é permitida. As habitações passam ao longo de gerações pelas famílias que já moram aqui. Estima-se que cerca de 3000 pessoas vivam entre-muralhas. As crianças brincam nas ruas saltando à corda, jogando à bola, correndo umas atrás das outras. Nestas ruas, junto às muralhas, vê-se pouca gente e apenas locais numa rotina que é cumprida vagarosamente entre duas conversas de rua.
A cor é uniforme, quase monocromática: um amarelo barrento e cansado pelo tempo transmutando-se em cinzento. A sensação de paragem do tempo é grande. Falta a azáfama vibrante de outros séculos. Viro-me para uma rua vazia e preencho-a facilmente com soldados, clero, de comerciantes, mercadores e dos viajantes. Misturo cheiros de especiarias com cheiros de animais.





Nas ruas principais, no centro de Itchan Kala, o cenário altera-se. Há maior movimento e as ruas estão pavimentadas e mais preenchidas. De novo são os locais que as enchem. Aqui e ali encontro turistas ocidentais. Somos poucos, felizmente. A maior parte do turismo é russo. Alguns tajiques e cazaques. Vários asiáticos que aposto maioritariamente vêm da China.
A cidade não esqueceu a sua vocação: vender. No entanto deixou bem lá para trás, no tempo, as especiarias e a seda. Estas ficaram reduzidas a lembranças em tímidos saquinhos para turistas. Os uzebeques há muito que não têm poder financeiro para comprar. Vende-se objectos do dia a dia, coisas rotineiramente necessárias. Reparo que maior parte das bancas que ladeiam as ruas estreitas, tornando-as ainda mais estreitas, estão pensadas para o turismo: bonecos de feitos cerâmica e têxteis, pinturas, em seda ou não, estereotipadas com cenas ilustrando cenas da rota da seda. Não fujo ao que é igual e compro pinturas em papel normal e alguns bonecos em cerâmica representando cenas do quotidiano.

Cruzo os ícones arquitectónicos e históricos, os tais quadros da exposição de Mussogorsky.
Como em todas as galerias de um museu, há sempre aqueles quadros que dedicamos mais atenção, que mais nos cativam e prendem:


Kalta Minor



Dos vários quadros de Khiva, o Kalta Minor é dos mais icónicos.
É um minarete enorme, imponente e maciço. Mas está inacabado.
O seu nome significa Pequeno Minarete. Nasceu da pretensão do kahn Muhammad Amin de construir em Khiva o maior minarete da Ásia Central. O objectivo era atingir os 80 metros de altura. A construção começa mas acaba em 1855, ano em que o khan morre em batalha contra tribos turquemenas. Com sua morte, as discussões ao trono, sucessivas batalhas desviaram os fundos previstos para a construção deste minarete.
Mas a história também tem uma versão mais tenebrosa, se bem longe de ser invulgar ou rara. Conta-se que o arquitecto deste minarete teria um acordo com o khan de Bukhara que após acabar de construir o de Khiva construiria outro maior e mais impressionante nesta cidade. Ao saber isto Muhammad Amin manifestou a vontade de matar o arquitecto para que tal não acontecesse. Este não terá esperado que esta vontade se concretizasse e terá fugido, ficando a obra incompleta.

De qualquer maneira o minarete destaca-se em toda a Khiva. Massivo mas elegante, atinge cerca de vinte e seis metros de altura, com cerca de catorze de diâmetro na sua base. A sua decoração, toda em pequenos azulejos em diversos tons de azul e branca numa geometria perfeita, torna o Kalta Minor, uma das maiores referências desta belíssima cidade.


Mesquita Juma




Quando entrei na mesquita Juma (sexta-feira), fi-lo com uma reverência, com um respeito enorme.
Não só porque tenho uma grande afinidade e carinho por mesquitas, mas porque provavelmente será um dos locais de Khiva onde o peso da história mais se sente, onde mais se acumula.
Construída no século X, leva onze séculos de história com várias reconstruções ao longo deles.

É uma floresta de mais de duzentas colunas mergulhadas numa confortante semi-obscuridade que surge à nossa frente quando franqueamos a pesada porta de madeira trabalhada. Todas são talhadas manualmente nas bases e topos. Contam um pouco da história da mesquita, da sua evolução. Há colunas que datam do século X, outras têm datas mais recentes: séculos XI, XIV, XVI e XVIII.
É um espaço único, sem arcos, sem azulejos ou candeeiros. O tecto é liso com três óculos por onde jorram três intensas cascatas de luz, que iluminam intensamente a mesquita, nestes locais para depois se suavizar e ir decaindo quase até à escuridão nos pontos mais afastados destes.

Voltei à mesquita Juma uma segunda vez. A sua simplicidade, os contrastes de luz e sombra; ora contrastantes, ora suavizados; a delicadeza da madeira trabalhada, as diversas parcelas de história que ela encerra e finalmente a paz que as mesquitas me conseguem transmitir, tornaram esta mesquita o meu quadro preferido da galeria de Khiva.


Kunya-Ark (cidadela fortaleza) e o Palácio Tash Kauli





A história situa as suas construções em alturas distintas: a Cidadela de 1686 a 1688, erigida pelo Khan Muhammad Arang, e a construção do Palácio a mando do Khan Allakuli entre os anos 1830 e 1838, no entanto estes dois complexos estão unidos pela arquitectura e naturalmente pela lógica funcional.
Apesar de globalmente, todo o complexo Kunya Ark, a residência oficial dos Khans de Khiva, estar datado no século XVII, as suas origens remontam ao século V.  É uma cidade muralhada dentro das próprias muralhas da Itchan Khala. A sua estrutura, completamente funcional, continha uma mesquita, um harém, uma casa da moeda, um arsenal, tribunal, prisão, cozinhas, estábulos e residências.

O palácio Tash Kauli, conhecido por palácio de pedra, é tem três áreas distintas: uma área reservada para recepções, festas e banquetes, a segunda dedicada aos funcionários que lidavam com o tribunal e a gestão do edifício e dos seus mais de cento e cinquenta quartos labirinticamente interligados entre si e a terceira, o inevitável harém. No interior, três átrios, um por cada área, todos imponentes, com fachadas revestidas a pequenos azulejos de um azul intenso e tectos de madeira, únicos entre si, ricamente pintados com cores quentes em diferentes geometrias. A ladeá-los estão vários terraços sustentados por colunas de madeira - exibindo o mesmo tipo de trabalho que já tinha visto na Mesquita Djuma - assentes em bases de mármore decorado.
A utilização deste palácio prolongou-se até à segunda década do século XX.

Agora pouco resta destas duas estruturas.  A acção combinada do tempo acumulado com a do homem fizeram com que pouco sobrasse da arquitectura, da dimensão original, mas o que ficou, o que dá para admirar, dá bem a ideia da sua velha imponência, da glória passada.

Contratar um guia é essencial para desvendar as histórias que todos estes pátios, os diferentes tons de azul dos azulejos, as madeiras dos tectos e as bases marmóreas das colunas contam, perceber o porquê da Mesquita Juma nos fascina com uma arquitectura que resiste ao tempo e ao homem, os segredos que as madraças e minaretes de Khiva encerram.



Minarete e Madraça Islam Khodja

Não muito longe da Mesquita Juma está a madraça e o minarete que receberam o nome do home que os pensou - Islam Khodja.
Este conjunto construído bem no fim da primeira década do século XX tem uma característica muito particular: o minarete é o mais alto de Khiva mas a madraça é a mais pequena. Com pouco menos de dez metros de diâmetro na base mas com cinquenta e sete metros de altura, o minarete não tem a imponência do Kalta Minor mas em contrapartida tem uma elegância e esbeltez que este não tem.

É para chegar aos quarenta e cinco dos seus cinquenta e sete metros, que vale a pena subir, cujo acesso começa por uma escadaria de madeira que por sua vez dá acesso uma escada de pedra em forma de caracol, imersa em escuridão. Havia quem utilizasse a luz dos telemóveis para ver por onde subir, com degraus altos, irregulares e bem gastos.
Um enorme clarão de luz surge e emergimos num miradouro com uma vista privilegiada e única para a cidade.
Daqui percebe-se a traça e arquitectura de Khiva, a sua cor uniformemente barrenta, apenas derrotada pelas decorações dos minaretes, mesquitas e madraças.

Desço rapidamente pensando o que acontecerá se me cruzar com alguém que venha a subir. Não tenho vontade de enfrentar de novo a subida destes degraus. Quanto mais em baixo, hipoteticamente, me cruzar com alguém que suba, mais fortes são os meus argumentos para eu não ter que refazer a subida.
Já cá em baixo, a minha respiração estava normal, mas as pernas essas... latejavam.




Khiva não é muito procurada pelos ocidentais, está longe de ser turística. Acrescento, felizmente. 
Chegar a esta cidade não é fácil e não é tão exuberante como Bukhara ou majestosa como Samarcanda.
No entanto, se tivesse que escolher entre estas três cidades, aquela galeria cujos quadros mais falaram comigo, mais me atraíram, a que mais me fez sentir em casa e ganhou o meu carinho, definitivamente foi Khiva.



Comentários

  1. Uau!!! 😮

    Texto maravilhoso e as fotos ... 🌟🌟🌟🌟🌟
    ( adorei o gato ) 🙂

    👏👏👏

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    1. Fico super contente por teres gostado :))
      Um gato fica sempre bem em qualquer lado ;)

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  2. Nossa a arquitetura é linda, permanecem lindos apesar do passar dos tempos...

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    1. Esse é o segredo da grande arquitectura, séculos após séculos ser capaz de manter a capacidade de nos maravilhar com ela, de nos retirar as palavras, de a sentirmos dentro de nós, de falar connosco acima de tudo. :)

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