Turmi, Etiópia - dez anos, algumas histórias

Etiópia, Outubro 2014


Ukulli Bullah

Viajar é um acto a que se aplica toda uma série de clichés e chavões que começam todos por descobrir: novos sabores, novas culturas, novas gentes, novas cores, novos caminhos.
Tudo verdade. Mas também é algo que raramente se menciona, nem sempre acontece e é difícil de conseguir - retirar de cima de nós o manto da cultura ocidental e essa forma tão massificada de ver e percepcionar o mundo.
Particularmente no que diz respeito à forma de entender a morte, a gastronomia e a cultura. Não é fácil de compreender para um ocidental que se faça, como no México, uma festança no dia dos mortos, quando nós fazemos filas chorosas para ir aos cemitérios nesse mesmo dia, que comamos facilmente tripas de vaca mas nos choca que os vietnamitas comam carne de cão ou que às mulheres himba namibianas seja permitida ter múltiplos parceiros e vivam numa sociedade matriarcal quando a nossa sociedade é monogâmica e ainda muito machista.

No entanto houve uma altura em que quase não consegui retirar de mim o ocidente.
Foi em 2014, nos arredores da vila de Turmi, sul da Etiópia.
O sul da Etiópia é profundamente tribal. Numerosas tribos coexistem mais ou menos de uma forma pacífica no vale do Omo. Uma dessas tribos são os Hamer.
Como muitas outras tribos, os Hamer têm um ritual de passagem de menino para adulto, para guerreiro. É a cerimónia Ukuli Bullah. Em inglês chamam-lhe Jumping Bulls Ceremony, em português será qualquer coisa como a Cerimónia do Saltar os Touros.
É uma festa enorme, dura vários dias. Várias famílias são convidadas e vêm de diferentes pontos da região. Come-se e bebe-se fartamente. É no último dia da festa que tudo acontece.

O menino (ukuli) que se vai tornar homem, tem de saltar por cima de vários touros alinhados ao lado um dos outros. Tem que o fazer três vezes sem cair. No fim desta cerimónia (bullah) é um adulto, um guerreiro, um maza.

Antes disto, as mulheres da sua tribo, da sua família, manifestam o seu apoio ao menino que está prestes a deixar de o ser.
Colocam chocalhos nos tornozelos, nos joelhos, nos pulsos e soprando cornetas, saltam e dançam de uma forma frenética, num frenesim que as leva quase ao êxtase, ao transe.


Aproximam-se dos mazas, jovens guerreiros de outros clãs que já fizeram o Jumping Bull e pedem para ser vergastadas, chicoteadas nas suas costas, no ventre, nos braços.
As vergastas são feitas de pequenos e finos ramos de árvores que são despidos da folhagem, dos espinhos e depois cuidadosamente alisados. Estes jovens, levantam os braços e fazendo silvar o ar, fazem baixar estes ramos encontrando a pele num terrível ruído seco, rasgando-a, pelo menos causando-lhe profundos vergões. Inacreditavelmente elas não pestanejam, não emitem um único esgar, gemido ou som de dor, não interrompem os seus saltos e insistem pedindo mais.

Se um maza se recusa a fustigá-las elas vão procurar outro que o faça.
Estão nisto há várias horas. Todas têm as costas massacradas com vários rasgos sangrentos. Um pouco por todo o lado ouvem-se estes silvos e fracções de segundos depois aquele brutal som seco da pele a ser castigada.


Há uma zona de descanso para as mulheres retemperarem forças, para se hidratarem. Poucos minutos depois regressam para mais uma dose, para mais uma sessão de vergastadas.
Encolho-me sempre que ouço estes silvos. A determinada altura estou mal disposto, demasiado incomodado por esta violência consentida e desejada.
Digo a mim próprio que esta é a cultura dos Hamer e que viajar implica encontrar este choque cultural que tanto gosto e procuro.
A minha cultura ocidental não percebe e insurge-se contra o que vejo e ouço. Digo a mim próprio que não estou no ocidente, estou na Africa oriental, e que nós, ocidentais, teremos práticas que eles por sua vez não perceberão. Esforço-me. Deixo então de me insurgir e passo a aceitar mas continuo sem perceber.

Assistir ao Ukuli Bullah foi das coisas mais incríveis, difíceis e que mais me colocaram à prova, mas também das mais fascinantes que assisti desde que comecei a viajar.





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