Arménia, Yerevan - Memorial do Genocídio Arménio (Tsitsernakaberd)


Há uma enorme simplicidade na elegância algo abstracta e respeitosa do memorial ao genocídio arménio em Yerevan. A lembrar a arquitectura brutalista, e claramente minimalista, o complexo de Tsitsernakaberd dedicado à memória do genocídio começou a ser construído em 1965 e abriu ao público em 1967.
O complexo, e particularmente o Santuário, enche-se anualmente de milhares de pessoas para recordar o dia 24 de Abril de 1915.
Flores são colocadas em redor da chama eterna para não deixar cair no esquecimento o dia em que cerca de duzentos e cinquenta intelectuais arménios foram presos e mais tarde executados dando origem ao genocídio que se prolongaria por mais oito anos e custaria a vida a milhão e meio de arménios.

Ele é constituído por três elementos: o Muro, o Santuário e o Obelisco

Ladeado por uma relva bem cuidada e a acompanhar o caminho que nos conduz ao complexo do memorial ao genocídio arménio, está o Muro da Memória. Com cem metros de comprimento, estão gravadas as cidades e povoações arménias que foram alvo do genocídio perpetuado pelo império otomano entre 1915 e 1923.
No fim deste, está o Santuário da Memória. São doze lajes de basalto, inclinadas para dentro, formando um círculo. As lajes simbolizam as estelas (khachkar) onde são gravadas as típicas cruzes arménias e simultaneamente representam o processo de luto. No centro do círculo, arde uma chama eterna. A chama está a metro e meio abaixo do solo, representando o milhão e meio de arménios que perderam as suas vidas no genocídio.


Ao lado do Santuário e a impor-se pela elegância e pela sua altura, quarenta e quatro metros, está uma agulha, um obelisco de granito dividido em dois. Representa o renascimento do povo arménio. A sua divisão simboliza a dispersão do povo arménio. Durante e após o genocídio, a quantidade de arménios que fugiram do seu país foi enorme. Desde cedo, e ainda hoje, que a diáspora arménia é maior que a população do próprio país.

Na década de noventa, dois elementos seriam adicionados ao complexo do Memorial do Genocídio: o Jardim da Memória e o Museu.
No primeiro, líderes religiosos, chefes de estado e de delegações, ou possuidores de altos cargos na altura da visita ao Memorial, plantam um abeto com uma placa indicando os seus nomes e países de origem.
No segundo, o Museu, construído debaixo do chão, está a cronologia das principais datas e eventos que deram origem e ocorreram durante o genocídio, assim como relatos, testemunhos e fotografias do mesmo.


Silêncio e paz. A envolvência de todo o Memorial é serena, respeitosa e cerimonial. Solene. Convida à introspecção. O céu estava límpido e uma ligeira neblina azul no horizonte disfarçava o contorno do Monte Ararat, na Turquia.
Tinha espreitado algumas das placas e abetos plantados no Jardim da Memória.  Encontro placas da Índia, do Líbano e da Moldávia. Países bem distintos uns dos outros. Espelham a grande diversidade geográfica da percepção do genocídio arménio e agora caminhava lentamente em direcção ao Santuário.


Tenho em mente os memoriais do Camboja e do Ruanda. Agora na Arménia, sei o que vou encontrar. Nos meus pensamentos as mesmas sombrias e pesadas questões desses locais caminhavam de novo comigo: O que leva um grupo de pessoas a querer exterminar, chacinar, outro grupo de pessoas? A planear e executar um genocídio? Ser capaz de montar todo um frio esquema de industrialização e logística da morte?

Sei que na psicologia de um genocida estão sempre presentes três características: a ausência de empatia por terceiros (psicopatia), a elevada auto-estima do narcisismo e a ausência de valores morais e sociais do cinismo. Há quem defenda que a estas três características se deva juntar igualmente o sadismo devido ao prazer que se retira em provocar dor e sofrimentos nos outros.
Tipicamente os seus líderes são sempre carismáticos e de forte personalidade, ganham o poder em consequência de crises políticas ou militares e procuram culpabilizar terceiros por essas mesmas crises. Exercem um poder autoritário, exigem autoridade cega e instituem o medo. Esses líderes sociais extremam essas mesmas crises: nós ou eles. Se não estão por nós, se não são como nós, então estão contra nós. São um obstáculo, uma impureza, uma ameaça ao que somos, ao que representamos, ao que pode ser perfeito. As pessoas ou o grupo excluído é despojado da sua humanidade e depois objectificado. São tornados coisas ou animais que precisam de ser deitadas fora, exterminados.
No fundo, as grandes forças motrizes de um genocídio acabam por ser o medo e a vingança e ambas apontadas ao mesmo sítio: à diferença.

O Santuário estava praticamente vazio. Entro no seu interior por uma das várias, e bastante inclinadas, escadarias que ladeiam as lajes de basalto. Algumas flores, todas brancas, que não sei identificar, estão dispostas em redor da chama eterna.
Um pequeno grupo de cinco ou seis pessoas estão lá dentro. Espero que saiam e depois com o Santuário só para mim circundo a chama eterna. Sento-me no chão e durante alguns minutos quedo-me em frente a ela, sentindo o peso, a força do seu simbolismo e do Santuário a tomar conta de mim.


"Não é só a gélida e meticulosa planificação de um genocídio que paira na minha mente. Penso não só nos que o lideram mas também nos que o concretizam. Pode ser exigida obediência cega mas será que não há consciência? A capacidade do livre arbítrio de dizer que não? De não participar?
Acredito que haja mas também acredito que essa possibilidade seja quase ou mesmo nula. Represálias, medo, devem estar bem presentes em quem executa. A doutrinação, a lavagem cerebral, a insanidade de um genocídio será um máquina voraz que trucida quem não pretende participar num processo destes, que anula, que dissocia as tomadas de consciência. A psicologia de grupo, o efeito manada, a sensação de pertença e de inclusão, a tendência quase inata para obedecer a alguém que está no comando e nos intimida, ajuda a diluir a responsabilidade individual, a apaziguar o peso da consciência no momento. Talvez induza uma forma de estado alterado de consciência, um transe soporífero e analgésico de longa duração, onde a verdadeira dimensão e peso das atrocidades cometidas seja suavizada ou até anulada. Um encolher de ombros onde o número dos mortos cada vez maior actua como um escudo, também ele cada vez maior, protector da consciência e da culpa. A concretização objectiva da inacreditável e cínica frase de Estaline que afirma que a morte de uma pessoa é uma tragédia, um milhão, uma estatística.
Se me choca a natureza, as motivações e as dimensões de um genocídio, a outra questão com a qual esbarro sistematicamente na incompreensão é a reacção, a falta dela, a passividade da comunidade internacional perante estes eventos.


A menos que haja motivos ou económicos ou políticos, esta assume-se meramente como espectadora, pouco interveniente e pouco ou nada humanitária. O genocídio ruandês de 1994, é um caso flagrante e triste de passividade internacional (ONU), onde sabendo de antemão o que iria acontecer, e depois já em pleno curso do genocídio que também custaria a vida a bem mais de um milhão pessoas, intencionalmente preferiu não intervir, não actuar."

Deixo o Santuário, contorno a esbelta agulha e retomo o caminho anterior, desta vez em direcção ao museu onde os relatos, os testemunhos e as imagens ir-me-iam mostrar, mais uma vez, a face mais negra, monstruosa e incompreensível da humanidade.

Quem, afinal de contas, fala hoje do extermínio dos arménios? - Adolf Hitler

"É com esta frase dita por Hitler em 1939 a ecoar na cabeça que saio do complexo do Memorial do Genocídio arménio.
É inegável importância da existência dos memoriais dos genocídios. Ajudam a organizar documentação, as investigações sobre o que aconteceu, ajudam a não esquecer os nomes dos perpetradores e de quem sofreu às mãos deles. São locais onde quem os visita pode se encontrar com os eventos em primeira mão, identificar-se, sentir empatia por quem sofreu com eles. Mantêm os acontecimentos vivos e acessíveis a todos. Servem para preservação de memória, para construção da identidade de um povo, de um país. Um legado para gerações futuras. Mas acima de tudo, a sua função primordial é para que os genocídios nunca mais aconteçam, para que não se repitam. Para que, no caso da Arménia, e contrariando a questão que Hitler cinicamente levantou, o sofrimento, a morte, o genocídio dos arménios às mãos turcas não caia nunca no esquecimento, que nunca não deixe de ser falado, que nunca cesse de ser uma reflexão sobre os nossos comportamentos.
O que teremos perdido com este e outros genocídios? Uma cura para uma doença? Um livro extraordinário? Uma poesia maravilhosa? Quem sabe uma pintura para a vida? Teremos perdido um ensaio particularmente bem feito? Ou talvez uma invenção, uma evolução decisiva da medicina que ficou por descobrir?





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