Kassala, Sudão - mesquita Khatmiya

Em Janeiro de 2018, o Sudão acusou a Eritreia de apoiar grupos de rebeldes opositores ao governo sudanês fazendo deslocar para a fronteira centenas de soldados. A Eritreia ripostou com os mesmos argumentos e da mesma forma, enviou tropas para a fronteira. Apesar de as relações entre os dois países africanos, ao longo de 2019, terem-se suavizado, ainda existe alguma tensão entre ambos. Por isso, os cerca de seiscentos e trinta quilómetros que separam Cartum de Kassala (que por sua vez dista cerca de quinze quilómetros da fronteira com a Eritreia) são um pesadelo burocrático. Põem a minha paciência e as minhas apertadas pernas na carrinha na van que me transporta à prova.

São dezenas de checkpoints, por vezes separados entre si por um par de quilómetros, para controlo de passaportes - levar várias cópias do passaporte é um ganho de tempo importante - e pagamentos de "baksheesh" aos oficiais que estão nestes pontos de controlo. Uma palavra de origem persa (mas que os egípcios usam até à exaustão) que implica um pagamento, uma retribuição para algo que nos é facilitado. Neste caso, o facilitar significa não chatear os estrangeiros. O que pode durar um par de horas num controlo, pode ficar resumido a alguns minutos. São os condutores que fazem o pagamento do baksheesh porque este não é pedido directamente aos estrangeiros. Das cerca de treze horas que demoramos a percorrer esta distância, cerca de duas horas são perdidas nestes controlos. Sem baksheesh, então...

Ancorada nas montanhas Taka e maravilhosamente enquadrada entre grandes monólitos graníticos arredondados pela erosão, está a mesquita Khatmiya. Uma visão que nos remete para outros tempos. 
É dedicada a Hassan Al Mirghani, filho de Mohammed Osman al-Khatm, fundador de uma das ordens sufistas mais importantes do Sudão; a tariq (ordem) Khatmiya. 
Foi esta mesquita que me trouxe até Kassala.


Para trás ficou uma alongada nuvem de pó levantada quando van se imobilizou. Esgueiro-me por entre os estreitos e estragados bancos de trás e saio cá para fora. 
O elegante minarete pontiagudo de forma octogonal que se via da estrada surge agora perante mim no enfiamento da parede lateral do lado direito da mesquita. Esta fascina pela simplicidade, pelo aspecto tosco e em estado bruto da sua fachada.
Exibe uma única cor, um pardacento castanho claro que resulta do mais simples material de construção possível de que foi feita: lama seca, o adobe. Não tem trabalhos de baixos relevos, azulejos, inserções de mármore ou de outras pedras ou de caligrafia árabe a decorá-la.


Tal como o minarete, uma cúpula aberta aos elementos está reforçada com paus que a atravessam para a tornar mais resistente e rígida. Na entrada principal, uma fileira de pedras alinhadas ao lado umas das outras, meramente pousadas no chão, delimita uma área onde centenas de homens se preparam para orar. Formam uma massa quase indistinta de túnicas brancas e beges, coletes pretos e cinzentos e kufis quase sempre brancos.

Preciso de perguntar a vários homens o que se passa ali até encontrar alguém capaz de explicar. Um professor de química a viver em Cartum, explica num inglês sincopado: chego no último dia, de vários, dedicados à celebração do nascimento do fundador da ordem sufi Khatmiya.
Explica-me também que por debaixo da cúpula, que tanto me fascina, se encontra o túmulo de Mohammed Osman al-Khatm. Acrescenta que o terreno é tão sagrado que mesmo quando chove o túmulo se mantém seco. Faço um ar de espanto ao ouvir isto, mas já tinha lido que esta é uma das lendas que mais se conta sobre mesquita. Outra, diz que a mesquita foi construída em cima de areia, ou com areia, que veio directamente de Meca.

Aproximo-me da entrada. De imediato um homem dirige-se-me com braço direito estendido pedindo para ficar junto ao muro do lado direito. Acedo ao pedido e fico debaixo de uns ramos de uma árvore. Enquanto observo o que se passa à minha volta, aos poucos, sou rodeado por um grupo de crianças. A curiosidade é enorme. Alguns adultos também me rodeiam mas são as crianças, com uma curiosidade mais expansiva e difícil de conter, que constituem o grosso do grupo. Alguns, cumprimentam-me, tocam-me nas mãos, nas roupas, na câmara. Definitivamente estão fascinados. A distância inicial, a da timidez, começa a diminuir. Estão cada vez mais próximos de mim e em maior número, os contactos tornam-se cada vez mais francos e a curiosidade aumenta a olhos vistos.

Ouço alguns gritos curtos, uma correria e o ar a silvar. Como um bando de pombas que esvoaça fugindo à frente quando uma criança irrompe por elas, assim elas fogem quando um homem todo vestido de azul, aparentemente uma farda, as afasta de mim agitando um ramo de uma árvore. Claramente alguém que pensava que eu estava a ser importunado. Resultou por uma questão de alguns minutos. Pouco depois estava de novo rodeado por elas.

Subo a umas pedras e fico com uma boa visão da lateral direita da mesquita. Se à frente é o branco e o preto que predomina, na entrada lateral, onde as mulheres oram, há uma maravilhosa profusão desordenada de túnicas e lenços de cores vibrantes: amarelos, pretos, vermelho, azuis e verdes. O espaço, a céu aberto, é composto por uma série de arcadas paralelas umas às outras.
Divertido, não deixo de reparar que onde os homens se situam, estes se arrumam de uma forma ordeira e compenetrada. Onde estão as mulheres, há um corrupio de entradas e saídas, conversas, crianças ao colo, na mão ou simplesmente soltas como todas gostam de estar. 



Atravesso o recinto da mesquita para o lado oposto, para o lado da montanha. Havia quem subisse quase até à base dos monólitos. 
O sol põe-se. A luz torna-se frágil e ténue. Alonga as sombras e dourava ainda mais todo aquele ambiente de cor térrea.
Cá em baixo, um grupo de crianças divertia-se aproveitando o declive suave de algumas rochas para as descer, colocando debaixo do rabo uma garrafa de plástico grande de uma marca de um refrigerante qualquer. Estavam nisto há uns minutos largos. A minha intenção de subir até aos monólitos e ver a mesquita lá de cima esbarrou quando elas começaram espontaneamente a fazer poses à minha frente e a pedir para lhes tirar fotografias.
É frequente os homens e as crianças pedirem-me para tirar fotografias ou com os seus telemóveis ou com a minha câmara. Curiosamente, sendo um país tão pobre e os turistas raros por aqui, ninguém me pede dinheiro por elas.


Deixo-me estar por ali mais algum tempo. Absorvo aquela movimentada e estranha atmosfera para mim: a mesquita de adobe, os homens absortos na sua oração a Alá, a descontração das mulheres, o subir e descer constante das crianças na pedras, deslizando nas tais garrafas de plástico, e as pessoas que lá de cima, na base da montanha granítica, tinham a mesquita e aquela pequena multidão a seus pés.

Pouco tempo depois, um homem sobe às mesmas pedras onde eu tinha estado inicialmente e começa a cantar.  Elegante, a voz eleva-se firme no ar. A sua túnica branca passa quase despercebida na luz crepuscular. Não percebo o que canta mas o ambiente que o rodeia encanta-me.
Começo por não perceber porque está ele ali a cantar, mas, pouco depois, desconfio da razão. 
Entretanto, vários carros chegam e o número de pessoas que se dirigem para a mesquita aumenta, enchendo ainda mais o recinto. 

Há quem faça as abluções aproveitando um depósito de água plástico ali colocado para esse efeito
Coordenados, em minutos, começam a orar com a ritualização típica muçulmana. A esta hora do dia, ao pôr do sol, para os sunitas, estão na quarta oração do dia. Chamam-lhe Maghrib. À noite, antes do dia findar, farão a última das cinco orações do dia.
Quase de certeza que o homem que vi e ouvi a cantar era um muezzim, aquele que chama os fieis para as orações do dia. Hoje em dia, nas mesquitas, são gravações que substituem o chamamento destes homens. Foi muito especial e uma sorte ter assistido a aquele chamamento ao vivo. Há muito que desejava ter esta oportunidade.

A oração acaba. O recinto esvazia-se sem caos. A maior parte afasta-se a pé ou vai de bicicleta. Poucos entram em carros ou vão em vans partilhadas.
Há quem venha ter comigo para uma tentativa de dois dedos de conversa ou para mais uma fotografia tirada comigo. Alinho em tudo. 
Há quem se sente nas pedras e fique ali uns momentos. Entre eles, um jovem destaca-se das pessoas que o rodeiam. Enverga uma t-shirt da Juventus. Nas costas está um número e um nome escrito que tantas e tantas vezes vi e ouvi ao longo desta viagem pelo Sudão: Ronaldo. Eterno e sempre presente embaixador de Portugal. Curiosamente não muito longe dele andava um Messi a correr sem nexo pelo recinto. Também a Argentina me mostrava o seu embaixador.




Fico por ali a absorver a atmosfera. A sentir-me um estranho numa terra estranha. O facto é que ninguém me considerou estranho e emendo o pensamento: um desconhecido numa terra desconhecida. Gosto quando isto me acontece. No fim da experiência, da viagem, ambas as partes se tornarão menos desconhecidas. Um ganho reciproco. Talvez este seja o objectivo último de uma viagem: eu conheço-te, tu conheces-me. Sou "acordado". O motorista chama-me para ir para o hotel.
Curvo-me para entrar na van. No dia anterior, desde Cartum, tinha feito treze horas nela para conhecer esta mesquita e com muita sorte presenciei uma grande cerimónia. No dia seguinte, arrisco-me a outras tantas horas para regressar à capital sudanesa. Tinha valido a pena. Ver esta mesquita tão crua, tão diferente das restantes, o seu enquadramento humano e na montanha, justificava mais de um dia de viagem.




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