Piodão - alma de xisto, terra de histórias


No doloroso e lento percurso de mau piso que nos conduz à entrada de Piodão, onde tanto se sobe como se desce, onde a uma curva se opõe inevitavelmente uma contracurva vamos tendo os primeiros vislumbres da aldeia de xisto
Foi este mesmo caminho que Miguel Torga; médico e escritor, talvez mais o último; percorreu e sobre o qual propositadamente escreveu:

 - Com o protesto do corpo doente pelos safanões tormentosos da longa caminhada, vim aqui despedir-me do Portugal primevo. Já o fiz das outras imagens da sua configuração adulta. Faltava-me esta do ovo embrionário - 

Aninhada na encosta sul da Serra do Açor, nome da ave de rapina que em tempos abundou nesta serra ,como que semeada nos seus socalcos e a lembrar pintos aconchegados uns aos outros em busca de calor, estão as casas de Piodão.


À entrada da aldeia, como quem grita a plenos pulmões "aqui estou eu", está a Igreja Matriz com uma intensa e luminosa fachada branca, com parte do seu contorno traçado a azul, dominada por quatro torres terminando em forma de cone. O contraste com o xisto da aldeia dificilmente poderá ser maior, talvez desproporcionado.
Dedicada a Nossa Senhora da Conceição, estima-se que a igreja tenha sido erigida próximo dos anos setenta do século XVII. Em finais do século XIX, em mau estado de conservação, é renovada pelo cónego Manuel Fernandes Nogueira que tinha chegado ao Piodão em 1885 e que lhe dá a arquitectura e a cor que apresenta actualmente.
Com o seu busto no largo com o seu nome - Largo Cónego Manuel Fernandes Nogueira - ao lado da escadaria que dá acesso à aldeia, que esta reconhece e agradece o que fez por ela.


Uma breve passagem pelo posto de turismo e é-nos dado um mapa da aldeia onde mecanicamente é traçado um percurso pelos marcos mais conhecidos e procurados. Rapidamente é ignorado e colocado no bolso de trás das calças. A aldeia é pequena e a melhor forma de a conhecermos é entranharmo-nos no seu interior. As ladeiras e ruelas são labirínticas, estreitas e nem sempre a luz penetra no seu interior. As janelas, portas e muitos corrimões estão debruados a azul escuro. Aqui, e desta vez, o contraste com o xisto e a ardósia escura funcionam na perfeição dando-lhe um encanto e um charme enorme.
Prosaicamente, consta-se que a cor azul era a única disponível na loja da aldeia para pintar portas e janelas e a tradição encarregou-se que assim continuasse.
Numa das ladeiras uma casa declama; numa pequena tabuleta pintada em diversos tons de azul e feita de ripas de madeira; parte do poema de Miguel Torga, Sísifo.


Sem continuar a precisar do mapa passamos pela pequena Capela das Almas datada do século XVIII, pela Capela de São Pedro onde na fachada exibe um poema dedicado naturalmente a São Pedro, a Fonte dos Algares colocada num nicho ogival com a data de 1968 encimada por uma imagem de Nossa Senhora. No topo da aldeia está a Casa da Padaria que esteve no activo até ao início da década de 70 do século passado e agora convertida em alojamento local. 
Discreta, mal cuidada, com letras meio comidas pelo tempo e uma torneira pouco digna de si, a Fonte das Almas mostra como a aldeia era conhecida em 1939 - Piodam.
O nome Piodam remete-nos para a fundação da aldeia, para o século XII- altura em que os pastores medievais calcorreavam a serra do Açor com os seus rebanhos de ovelhas e cabras onde estariam incluídos cavalos que poderiam ter dado origem aos lusitanas, uma raça de origem portuguesa. Construíram as suas casas, um pequeno casario, não muito longe do que é agora a Piodão. Esse casario teve que ser deslocado no século XV para dar lugar à construção de uma abadia devotada a São Bernardo. Dessa deslocação surge a localização actual de Piodão.

Tomando atenção aos detalhes reparamos que algumas portas têm nas suas ombreiras pequenas cruzes de madeira. Elas servem para proteger, num pedido a Santa Bárbara, a aldeia das trovoadas que assolam Piodão. Incrustada na face da serra, a aldeia funciona como um para-raios natural. 
O chão está forrado a xisto negro. Nas paredes mais húmidas trepa o musgo e vegetação verde cobrindo a pedra. O som da ribeira, das diversas fontes, da água que corre pelas levadas de xisto, acompanha-nos neste percorrer de passos lentos. Piodão leva-nos para outros tempos, para as lendas e mistérios.

Uma lenda (ou talvez história) conta que os três carrascos que executaram Inês de Castro, a pedido do rei D. Afonso IV, fugiram para Castela quando o rei D. Pedro, e filho de D. Afonso, subiu ao trono. O rei português queria vingança e sugeriu ao rei de Castela que em troca dos três algozes da sua amada, ele libertaria outros tantos prisioneiros. O rei de Castela terá concordado. Um mendigo chamado Garcia soube disto e foi a Castela para avisar o seu amigo Diogo Lopes Pacheco, um dos envolvidos na execução. Trocando de roupas com Garcia, e assim disfarçado, refugiou-se em Piodão conhecendo o quanto isolada era esta aldeia e, assim, escapou à fúria assassina do rei D. Pedro.

De volta ao largo, ao provar licores de mirtilo e castanha, a excelente broa de batata e comprar uma miniatura de uma casa de xisto, um jovem empregado responde a uma pergunta que poderá intrigar quem passa por aqui:
- Porque uma aldeia de xisto como Piodão pertence à rede de aldeias históricas e não às de xisto como seria de esperar?
- Porque as aldeias históricas surgiram primeiro que as do xisto e uma vez integrada nas primeiras já não pode as segundas.
- E quantos habitantes a tempo inteiro residem aqui?
- Cerca de 100. 
E acrescenta com um sorriso de orgulho:
- Eu incluído.







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