Monsanto - alma de pedra


Alcandorada nos blocos graníticos que populam no alto do Cabeço de Monsanto, um monte escarpado de 758 metros na Beira-Baixa, Monsanto tem um aspecto de aldeia irredutível. Um lugar onde 
os gauleses de Goscinny e Uderzo adorariam basear-se para espancar uns quantos romanos e onde o seu eterno medo, que o céu lhes caia em cima, até poderia acontecer.

Depois de Relva, Monsanto faz-se anunciar, do lado direito da estreita estrada, por dois imensos penedos de granito encostados um ao outro pelos seus topos. Debaixo deles, um banco também ele de granito.
Segue-se a estrada acima e entra-se em Monsanto. Estaciono o carro na Praça dos Canhões. Em frente fica um conhecido café local, o Baluarte do Sr António Beatriz.



Há vestígios de presença humana em Monsanto já no paleolítico. A existência de castros (povoados fortificados) lusitanos remete para os finais da Idade do Bronze e transição para a Idade do Ferro - entre os 1000 e os 500 anos a.C - a consistência da presença humana nesta fortaleza natural.
Sabe-se que por aqui passaram inúmeros povos e culturas como os celtas, romanos, suevos e visigodos, árabes e templários. 
Conquistada em 1165 por D. Afonso Henriques, passa, por seu desejo, para as mãos dos templários através do seu Grão-Mestre D. Gualdim Pais. Em 1174, o primeiro rei português dá a primeira carta foral a Monsanto, das várias que esta irá ter ao longo dos tempos.

Onde a história é longa, inevitavelmente há lugar para lendas.
Conta-se que no século II aC, por altura de um longo cerco de sete anos que os romanos terão imposto ao castelo, os sitiados a passar fome, terão atirado do alto do castelo uma bezerra para demonstrarem que comida não lhes faltava. Convencidos, e após estarem tantos anos no cerco e sem resultados, os romanos retiraram-se e este foi levantado.

No entanto nem só de história antiga ou de lendas vive Monsanto. Em 1938, num concurso, político, do Estado Novo, Monsanto é considerada a aldeia mais portuguesa de Portugal. O povo ignora os motivos desta atribuição e orgulha-se do epitáfio que ainda hoje sustenta (não houve mais concursos desde então), e que lhe valeu um galo de prata. Uma réplica dele é exibida no topo da Torre de Lucano, no centro da aldeia. O original está na posse da autarquia. No ano de 1995, passa a integrar as 12 Aldeias Históricas de Portugal. 


Duas ilustres personagens da nossa cultura recente também deixaram as suas marcas no granito desta aldeia histórica: Zeca Afonso e Fernando Namora.
Em 1969, Zeca Afonso compra uma discreta e exígua casa com objectivo de ter um local de inspiração e descanso mas também, e se necessário, para poder esconder quem precisasse o antigo regime ainda era um hábito. Contudo tal não chegou a acontecer. Zeca não chegou a recuperar a casa e até ao momento esta encontra-se nas mesmas condições em que foi comprada. Desde essa altura que há intenção de a transformar numa casa museu. E ainda não passou delas.
A presença de Fernando Namora foi mais activa e duradoura. Chega a Monsanto aos vinte e quatro anos. Próximo do arco da entrada para a vila, na rua que passa debaixo dele, está a casa onde morou. No centro da aldeia, na Rua das Fráguas, encontramos o seu consultório onde exerceu medicina entre 1944 a 1946.
Dos monsantinos, o médico escritor e poeta descreveria-os como um povo "soturno, endurecido a subir e descer abismos". Não será de todo a sensação que se ficará deles. Com o correr das décadas, com a chegada do turismo, as gentes monsantinas tornaram-se pessoas de conversa fácil, de sorrisos e comprimentos espontâneos.

Calcorrear Monsanto é uma descoberta. As ruas são estreitas, por vezes íngremes e algo labirínticas. Estão frequentemente mergulhadas nas sombras que os blocos graníticos impõem ao bloquear o sol. As casas fundem-se e confundem-se nos penedos que as abraçam.
Ruelas pouco evidentes obrigam-nos a abaixar e a contorcer-nos por entre o granito que obstrui parte delas. Conduzem-nos a largos, recantos e a outras passagens insuspeitas por quem ultrapassa o descuidado pensamento que por ali não deve haver nada.
As casas estão cuidadas e percebe-se que existe orgulho e atenção nas construções e recuperações. 



Para compreender Monsanto apenas um mero passeio pelas suas ruas e ruelas é manifestamente insuficiente. Imperativo visitar o Castelo - erigido pelos templários e ex-libris de Monsanto - o Largo do Cruzeiro, a Torre do Lucano (ou do Relógio), a Gruta (uma antiga furda) e não longe do Castelo, as Furdas (pocilgas). Crê-se que os canhões que se vêem no largo à entrada da aldeia terão sido utilizados nas guerras peninsulares do século XIX.
Os caminhos de Monsanto também nos levam percorrer o seu profundo lado religioso. Existem inúmeras igrejas: a Igreja Matriz (ou Igreja de São Salvador), a penas alguns metros acima do a Igreja da Misericórdia (no seu enfiamento está a Torre de Lucano), no topo rochoso de Monsanto encontramos o solitário Arco da Capela de São João - o que sobra das suas ruínas e ao mesmo tempo um miradouro - e a capela de São Miguel do Castelo. Fora da aldeia, a cerca de seis quilómetros, está a capela São Pedro de Vir-a-Corça, também ela dona da sua lenda.





Se o Castelo e a Capela de São Pedro têm as suas lendas, as Marafonas (e não Matrafonas), de origem longínquas no tempo, surgem associadas a várias crenças. Rui Pedro, um antigo cidadão e viajante do mundo, agora casado com uma tailandesa, tem uma loja de artesanato. Está cheia de fotografias suas tiradas nos países por andou. Predominam as fotografias e retratos de África e da Ásia. Destoam completamente do artesanato da sua loja. Rui, já vendeu algumas mas agora as que tem são para recordação dos seus antigos tempos. Escolheu Monsanto para assentar, por ter origens aqui e o tempo passar mais devagar. Ganha menos mas tem mais qualidade de vida. "Exactamente o que procurava."
Pergunto-lhe como foi para uma tailandesa sair do seu país para ir para outro país, outra cultura e outro ritmo, especialmente quando se vive numa aldeia isolada e com alma de pedra.
Sorri e explica: "Ainda está a ser difícil, mas começa a habituar-se."
A minha verdadeira curiosidade eram as bonecas. Que significado tinham, como se chamavam. Rui começa a explicar: "São bonecas de trapos feitas à mão, de vários tamanhos, tendo no seu interior uma cruz. Têm a curiosidade de o seu rosto não ter olhos, boca, nariz e ouvidos. Para além de protegerem contra as trovoadas, estão também ligadas à fertilidade e à protecção contra o mau olhado. Devem ser colocadas debaixo da cama dos recém casados. Por não terem olhos, ouvidos e boca, elas não ouvem, não vêem e não falam."
Comprei umas quantas para dar e fiquei com uma para mim.

Antes de entrar no carro espreito uma vez mais o miradouro da Praça dos Canhões. Há poucos turistas em Dezembro e tal como os dias anteriores este também é um dia de sol. 
O futuro da aldeia parece estar assegurado. Não padece da desertificação que a maior parte das pequenas aldeias (históricas ou não) sofrem. Tem uma população activa permanente, até jovem, que tenciona manter as tradições e dar a vitalidade necessária para poder enfrentar sorridente as próximas décadas.
Se, mais uma vez, o turismo massificado não a desvirtuar, parece eterna e capaz de sobreviver à eternidade. Os seus penedos de granito, mudos, continuarão a sustentar o tempo em cima deles sem que este os desfaça, fissure ou revele os segredos e histórias milenares.







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