os cordofones do mestre Domingos Machado


Foi necessário perguntar a dois senhores que estavam a fumar um cigarro numa bomba Galp/Freitas para saber onde ficava, apesar de o Maps informar que já lá tinha chegado.
"O Museu dos Cordofones?" perguntou um enquanto simulava que tocava uma guitarra.
"Sim, esse mesmo."
"Está a ver aquele camião branco parado? Estacione atrás dele, é ali."
A entrada estava a cem metros atrás da estação de combustível. Discreta, mesmo à face e do lado direito da estrada nacional N14, na direcção a Braga, em Tebosa. Uma casa, recente, na fachada em pedra exibia aquilo que procurava: Museu dos Cordofones Domingos Machado.


Ninguém atendeu quando bati à porta. Por isso entrei pelo jardim caminhando cautelosamente uns metros debaixo das vinhas ainda verdes. O filho encontrou-me e veio falar comigo dizendo: "suba um pouco mais e encontra o meu pai na oficina."
O mestre, de cognome violeiro, Domingos Machado estava a trabalhar num cavaquinho. Tinha outro quase completamente restaurado. Quando nos viu entrar largou o que estava a fazer para falar connosco. Começamos a falar sem esforço nenhum e a conversa não parou. 
A oficina estava poeirenta. A luz que entrava pela janela espalhava um tom castanho e quente por todo o lado. Havia aparas de madeira, moldes pendurados, réguas e cinzéis, grampos, cheiro a verniz e a cola. Os cavaquinhos, uns já completos, outros a caminho de estarem e alguns ainda mal iniciados, estavam também espalhados pela oficina e por outras duas salas, que mal se adivinham que existiam, a partir da oficina.

Começou por falar de madeiras: pau santo, a melhor e a mais cara porque também a mais rara, ou em alternativa, as madeiras de pinho, tília, nogueira ou cerejeira. Tudo importa no som: a madeira, a espessura, a rigidez.
Quando alguém procura um determinado som, não se poupa a esforços. Faz vários exemplares até o encontrar. Os restantes são vendidos.




Conduz-nos para os seu escritório contíguo à oficina. Muita papelada e algumas facturas estão descuidadamente pousadas numa secretária. Mas o seu objectivo são as fotografias. São dezenas. Estão pregadas em painéis de cortiça e protegidas por vitrinas de vidro. Tal como os cavaquinhos. Desfia memórias e histórias.
Os dedos e as suas mãos magras, ossudas traçadas por grossas veias, vão mostrando a história quase uma a uma de cada fotografia. Encontros, histórias e de novo memórias de tempos antigos.
Os nomes desfilam: Júlio Pereira, José Mário Branco, António Chaínho, Amália, Pedro Barroso, a Tuna Académica da Universidade do Minho, encontros com outros artesãos como ele e até um certificado do Guiness do maior encontro de cavaquinhos em Coimbra: 803. Este ano ou para o próximo está previsto outro encontro para uma tentativa de novo recorde. Desta vez estão previstos pouco mais de mil.
Não há rancho folclórico, tunas académicas, orquestras e grupos populares baseadas no norte que não tenham um instrumento feito por si.

Diz por onde o cavaquinho passava iam-se criando novas variações: tamanho, número de cordas e afinações. Em Portugal e no mundo. Coimbra, Lisboa, Algarve e Madeira são alguns exemplos nacionais. Levados pelos portugueses, Cabo Verde, Brasil e Indonésia estão na lista das influências internacionais do cavaquinho português. O expoente máximo é o Havai com o seu muito famoso cavaquinho, o ukelele.
Braguesa, campaniça (a minha preferida), clássica e portuguesa, são guitarras e violas que também passam pelas suas mãos. Mas já não as fabrica tantas vezes. Prefere restaurar.

Na segunda sala, bastante mal iluminada, estavam pipas. O nosso anfitrião também produz o seu vinho. Vinho, música e negócios convivem aqui. Numa bancada do lado direito estava um cavaquinho pousado com as cordas viradas para baixo. "Está pronto. Está completamente restaurado." Pego nele com cuidado. É leve e delicado. O filho discutia pormenores com um comprador. 

Conduz-nos para o museu propriamente dito. Pelo meio uma paragem debaixo das vinhas para mais uma história e duas preocupações.
Nasceu em 1936 e apesar de não o desejar, aprendeu a sua profissão com o seu pai, Domingos Manuel Machado. Não sem antes ter tentado outras profissões sem sucesso e a única saída era mesmo o negócio do seu pai. "Parecia que estava fadado."
Confessa alguma tristeza por a sua arte acabar no seu filho, Alfredo Machado. Tem dois netos. Um é portador de deficiência e o outro apostou noutra profissão. Não há continuidade neles.
Com resignação também sabe que a sua profissão está a desaparecer. A produção seriada das fábricas e a composição digital retiram espaço ao fabrico artesanal. Sobra o restauro.


No museu estão instrumentos feitos por si. Réplicas de instrumentos manufacturados para clientes importantes e cordofones da colecção particular feitos pelo próprio mestre ou doados por terceiros. São mais de seis dezenas de exemplares.
Encontro instrumentos cujas sonoridades que por as conhecer me são queridas: o dulcimer medieval, a cítara indiana e a kora africana. A Rússia, os Estados Unidos, a Venezuela e o mencionado Havai estão também representados nestas vitrinas.
Por cada instrumento, uma paragem. Fala da sua origem, das escalas, dos números de cordas e as diferentes afinações. Aqui as suas descrições são rápidas e muito mecanizadas. Devem ter sido repetidas incontáveis vezes.

Tem uma colecção de documentos que serviram para dissertações, estudos e teses e várias dezenas de cds. Gosta de um particular, em particular: "Vou mostrar algo que os media não acreditam e não mostram."
Nas suas nodosas mãos está um cd um pouco maltratado. Leio na capa: Tai Chi de Oliver Shanti & Friends. Mas o segredo daquele cd, segundo o artesão, não está na capa mas antes na contracapa.
Sem os óculos não consegue ler e pede-nos que o façamos. Aponta para uma determinada zona. Descreve os inúmeros instrumentos utilizados pelo músico. E lê-se: cavaquinho, viola braguesa e fado guitar. O Sr Domingos Machado não o refere mas Oliver Shanti, um conhecido produtor New Age, é um alter-ego da mesma pessoa que criou outro, Oliver Serrano e cujo nome verdadeiro é Ulrich Schultz. Um homem de passado muito obscuro que viveu em Vila Nova de Cerveira.

Na sala principal, a mesma onde nos mostra o cd, por cima das janelas abertas de par em par, está pendurado uma enorme viola. Chamo a atenção para ela. O ancião diz-me que é um violão contrabaixo restaurado por ele e que só há quatro ou cinco iguais àquele em Portugal.
Uma história, um cavaquinho, destaca-se das todas as outras pelas várias vezes que foi repetida ao longo da visita. Um cavaquinho feito por si que chegou às mãos do ex-Beatle George Harrison que por sua vez o ofereceu a Paul McCartney. Claramente tem um orgulho gigantesco nele. Fez uma réplica dele.
É nela que o mestre se despede de nós tocando uma música de Amália Rodrigues.
Pede-nos que assinemos o livro de visitas e convenço-o a tirar uma fotografia ao lado da fachada do museu e outra ao meu lado.



Visitar este museu, inaugurado em Setembro de 1995, é bastante mais do que ver uma exposição de instrumentos de corda. Acima de tudo é visitar as memórias e as histórias de um artesão que dedicou a sua vida aos cordofones, privou com gente muito relevante da história da música e adquiriu um saber e experiência invulgar. Ter o seu nome dado a este museu, único em Portugal, é a melhor forma possível de honrar o seu legado.

A melhor altura para visitar este museu é enquanto o mestre Domingos Machado estiver nos nossos dias.
A entrada é gratuita. Para planear ou para visitas de grupo é marcar pelo número 253 673 855.
Hoje, apenas aparecemos e sem problemas. Mas pode ter sido uma questão de sorte.







Comentários

  1. Que texto maravilhoso, cheio de admiração e carinho! Quando um melómano encontra um mestre, o encontro só pode ser memorável. Parabéns!!

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  2. Respostas
    1. Olá Sofia 🙂. Obrigado pela tua visita e comentário 😊.
      É um bom sítio para explorares também para teu blog 😉.
      A visita à oficina (diria imperdível) obriga a vencer uma escadaria com talvez 4 degraus mas o museu 🎵 si tem uma acessibilidade razoável. 🙏🏻🙏🏻🙏🏻 🙂

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