Lhaore, Paquistão - e o mundo acabou (começando no quarto 808) durante dois dias

Por muito que viajemos, experiência que acumulemos ou cuidado que tenhamos com o que comemos ou bebemos, há-de haver uma altura em que meteremos a pata na poça forte e feio. Aquela altura em que a confiança excede a precaução. Já a meti várias vezes. É inevitável. Ainda não tinha era passado pelas consequências. Pelo menos, a este nível.

Lahore, a segunda maior cidade, a passar os treze milhões de habitantes, do Paquistão, vai-me ficar para sempre na memória e principalmente o quarto 808 do Gulberg Unique Continental.
A viagem de Lahore para Naran, no norte do Paquistão ia ser longa. Uma extensa jornada de doze a quatorze horas de condução sabendo de antemão que parte das estradas ia estar mesmo em más condições. Invariavelmente os dias longos começam sempre bem cedo, por isso ficou combinado com o guia e motorista que o levantar era por volta das quatro e meia da manhã para sair meia hora depois. 
Esta viagem iria ser feita em condições terríveis para mim.


Talvez fossem cinco e meia da manhã. 
Entrei a cambalear no hospital central de Lahore apoiado nos ombros do meu guia paquistanês, Usman.
Estava pálido, muito fraco, tonto, nauseado e com uma sensação permanente que ia desmaiar nos segundos seguintes. Estômago e barriga pareciam estar a explodir. Estar em pé era um martírio. Precisava de me deitar urgentemente. Encontro um banco corrido de madeira e deito-me nele, indiferente a saber se podia ou não. Ou era ali, ou no chão das urgências. 

As urgências tinham algum movimento. Luz fraca, algumas macas, poucos equipamentos, gente a gemer, uma criança chorava e alguém vomitava, exactamente aquilo que tinha medo que me acontecesse, pensei que alguém me devia dar um balde; no chão que depois viria a ser limpo. Apesar de tudo não havia caos ou agitação desmedidas. 
Sou chamado. De novo apoio-me nos ombros do meu guia e este leva-me para a área das triagens.

Chamar área de triagens é uma força de expressão. Na verdade era uma mesa, tipo secretária, desequilibrada e de madeira com quatro cadeiras de cada lado, plantada no meio das urgências. Duas cadeiras estavam já ocupadas com um médico e o seu paciente, as outras duas era a minha e a do jovem médico que estava comigo. Falava um excelente inglês apesar de se dirigir principalmente a Usman. 
Mede-me a tensão arterial, verifica o oxigénio periférico, faz-me perguntas e com um lápis vai preenchendo um papel com as minhas respostas: Que sentia? Dores? Onde? Náuseas? Vómitos? Diarreia? Frequentes? Há quanto tempo? Estava a tomar alguma coisa? Sim a todas as perguntas, ininterruptamente e desde a uma da manhã. Há quase quatro horas que estava assim. Cólicas gigantescas. Tinha tomado cerca de doze imodiuns com zero de eficácia, estava a beber frequentemente para não me de desidratar e saquetas de sais minerais em abundância.
Não precisava que me dissessem o que tinha. Conhecia bem os sintomas de outras viagens. Estava com uma gastroenterite. Uma monumental gastroenterite. A maior da minha vida.

O médico aponta uma maca para eu me deitar. Estava suja de sangue seco e manchada com o que me parecia excreções também secas. Por um fugaz segundo penso que não era ali que me queria deitar mas certamente que era melhor que o chão e ficar em pé ou sentado não era uma opção. No entanto evito pousar a cabeça na almofada, fica antes apoiada sobre o meu braço.
Com um scalp canalizam uma veia na mão esquerda, previamente desinfectada com álcool gel do Covid 19, e sou colocado a soro. Nele, vão antieméticos, antibióticos e antidiarreicos. 
Cerca de hora e meia depois, creio que adormeci na maca, de novo é feita a medição da tensão arterial, oxigénio periférico e desta vez um electrocardiograma. Tudo ok e tenho alta. Retiram o scalp usando mais uma vez álcool gel. No entanto, andar ainda é algo muito complicado. Ainda estou muito tonto e debilitado. Usman tem consigo um conjunto de receitas.
Enquanto estive na maca, Usman, cuja mulher é médica ginecologista, foi-lhe mandando fotografias daquilo que estavam a medicar para saber se tudo está adequado. Ele foi inexcedível.

Um tuk tuk para a farmácia, depois o mesmo tuk tuk de volta para o hotel. A sensação de desmaio a qualquer momento ainda estava bem presente. Os meus colegas de viagem estão sentados nos degraus da entrada do hotel à minha espera. Estavam a olhar para um fantasma.
No autocarro que me levaria para Naran, retiraram-se as mochilas que tinham sido arrumadas no banco corrido de trás. Deitei-me nele em posição fetal e passo as doze horas seguintes praticamente sem me mexer. Bebia água naquela posição e não comia. 
Senti dolorosamente, cada ressalto, cada buraco, cada lomba, cada curva mais acentuada ou travagem mais brusca. Nunca pensei que aguentaria aquela viagem.

Pensava se tinha tido sorte ou azar por me ter acontecido isto no Paquistão. No hospital central de Lahore fui atendido em dez ou quinze minutos e hora e meia depois tinha saído. Num hospital em Portugal teria tido um tempo de espera de seis ou mais horas para no fim ter saído passado o mesmo tempo, com o mesmo tratamento e igual eficiência.


Não precisava de recuar muito tempo para saber o que tinha acontecido e qual a causa. 
Foi por volta das sete da tarde do dia anterior. Estava cansado pelas horas que tinha passado a percorrer o bazar Anarkali. Com duzentos anos de existência é um dos maiores e mais antigos da Ásia.
O calor, humidade alta, o movimento incessante de pessoas, o buzinar, rosnar surdo e o fumo dos motores das motoretas nas ruas estreitas a ziguezaguear por entre um formigueiro de pessoas, as ruas mal iluminadas nas ruelas secundárias do bazar e cheiros por vezes desagradavelmente intensos das bancadas de peixe, carne e perfumarias baratas, tinham cobrado o seu preço mental e físico em mim.

Precisava do sossego e do ar condicionado do hotel, de abrandar o dia. E principalmente de beber algo fresco e em quantidades quase ilimitadas. O meu cantil há muito que estava vazio.
Por volta das sete da tarde, antes de chamar um tuk tuk para o hotel, estico-me num pequeno jardim, encostado a um gradeamento e procuro com os olhos um supermercado ou um vendedor ambulante de bebidas onde pudesse beber algo fresco.
Estacionada atrás de mim está uma van branca com um condutor que esperava um grupo de alemães para os levar para o hotel. Já tinha trocado algumas palavras com ele quando tinha chegado ao jardim.
Shadab percebe que procurava algo e pergunta-me se preciso da ajuda dele e quando lhe disse que procurava água para beber, oferece-me a sua numa pequena garrafa de plástico.
Aceito rapidamente a oferta e ao retirar a tampa reparo que esta não está selada. Fico indeciso entre o risco de beber uma água que não confio ou rejeitar a água oferecida correndo o risco de ser ofensivo para o prestável condutor.
 
A minha decisão levou-me para os ombros de Usman e para as urgências do hospital central de Lahore.
Precisei de dois dias e meio para recuperar razoavelmente parte da minha capacidade física.
E até ao resto dos meus dias pensarei na equipa que limpou o quarto 808 do Gulberg Unique Continental. Passei horas seguidas entre a sanita e o lavatório. Heróis, sinceramente.
Muito dificilmente aceitarei, seja onde for, outro quarto com este número.


Talvez uma semana e meia de depois, na região de Chitral, Bilal, um outro guia paquistanês, passou um dia inteiro a vomitar e estava manifestamente muito pálido. 
Preocupado, quando lhe perguntei porque tinha vomitado e estava tão branco, o que se tinha passado, Bilal respondeu: "Foi da água que bebi." 
Nem os paquistaneses...





 







Comentários