Síria - três vidas

Quando cheguei da Síria, sugeriram-me, meio a brincar, meio a sério, que mandasse fazer uma t-shirt a dizer - Sobrevivi à Síria.
Ri-me para fora mas fiz um sorriso triste para dentro. A verdadeira questão, a verdadeira dificuldade é precisamente os sírios sobreviverem ao seu próprio país. Uma sobrevivência física mas acima de tudo espiritual, mental. O pior de tudo, é que eles estão sós. Tão sós que nem o próprio governo está interessado neles, tão sós que não são aceites em nenhuma parte do mundo e tão sós que nem os variadíssimos países que estão presentes na intensa e complexa política síria se interessam por eles.


Por questões de segurança ninguém pode viajar sozinho pela Síria. Só com agências locais. 
Não porque haja um controlo do governo sobre o que se pode ver, ou não, mas sim por onde se pode viajar ou não por causa das condições de segurança para um ocidental. Podemos traçar um determinado trajecto e a agência informa se é possível ir até lá ou não. E é algo volátil. Um "poder ir" pode transformar-se num "não poder ir" numa questão de dias ou horas, assim como o seu oposto.
Os check points são inúmeros. Todos os dias há vários onde se verifica de onde viemos e para onde vamos. O check point do momento verifica o check point anterior e por vezes contacta o seguinte a informar que há ocidentais em trânsito. Não é raro termos escolta armada dentro do autocarro, ou até nos restaurantes.
Na deslocação para a Ilha Arwad, feita por um pequeno barco que pode levar cerca de doze pessoas, foi sugerido que levássemos uma escolta de uma fragata russa estacionada nas águas costeiras de Tartus. A sugestão foi rejeitada e o transporte, à excepção das águas (bem) agitadas, foi obviamente pacífico.

Sentir pulso à Síria ao longo de duas semanas e meia, é viajar por palavras, que sabendo que podem coexistir numa mesma frase, não estamos habituados fazê-lo. 
Viajamos pela tristeza e desespero, pela esperança e pela sua ausência, pela criação e destruição. Pela arte, pela religião, pelo começo de civilizações e da história humana. E por um conceito, uma palavra que hoje em dia é usada até à exaustão, usurpada ao léxico universal pelo ocidente com um significado tornado vulgar e esvaziado, dito e escrito, associando-lhe indelevelmente duas palavras que não fazem qualquer sentido para a Síria: milhões e euros. Essa palavra, esse conceito - resiliência - ninguém melhor que os sírios, sabem, literalmente na pele, qual o seu verdadeiro significado e como a interpretar. Para eles, resiliência não é sinónimo de dinheiro, que estão muito de longe de o ter ou de o vir a ter, mas de esforço, de resistência, de estoicidade mental e física perante uma realidade diária que dificilmente melhorará.

Conheci particularmente bem três sírias. As três têm visões bem distintas daquilo que a Síria pode oferecer e do que esperam dela, duas sabem bem o que querem para si e a terceira só tem planos para o o dia que vive. 
Uma, chamemos-lhe G. pretende sair do país. G. usa hijab por uma questão de conveniência. Não se sente muçulmana. Tem até dificuldade em aceitar ou perceber as religiões. Não acredita em religiões da forma como estão correntemente estabelecidas, diria interpretadas. Que por acaso até está muito próxima das minhas. Ela mantém uma ligação (cultural) ao islão mas roça o ateísmo. Eu, como ocidental, tenho uma ligação (igualmente cultural) ao cristianismo mas tenho uma ligação bem mais próxima e efectiva ao budismo. 
É pragmática. Usa o hijab porque este lhe facilita a vida social e profissional. Por causa da família conservadora, dos amigos, do contexto em que vive. 
G. já tem país escolhido para onde ir, altura para ir e o que fazer nesse país. Pergunto-lhe se pretende de alguma forma manter uma ligação à Síria ou se o corte será total. Responde que pretende manter uma ligação profissional à Síria por força do trabalho que gosta de fazer e correntemente desempenha: guia de tours em Damasco.

A. é bem diferente de G. É católica. Talvez por isso seja mais expansiva, extrovertida, sorriso mais aberto e fácil que a contida G. A sua história é a história de milhões de sírios.
Estava em Aleppo quando a guerra começou em 2011. Durante três meses viveu aqui antes de fugir para Homs onde de novo viria a ser tocada pela guerra e voltaria a fugir. Viu três familiares próximos a serem mortos pelo ISIS e, mais uma vez, estava em Aleppo quando o terramoto se deu. 
Aprendeu a viver com a dor que ainda a inquieta e decidiu que não iria viver na dor da perda ou guardar ressentimentos sobre o que aconteceu à Síria. 
Ao contrário de G., A. pretende ficar no país. Apesar de saber que o país tem muito pouco para oferecer para quem lá vive, acredita convictamente que tem um papel a desempenhar na reconstrução do país. Acredita na Síria, acredita que o seu país precisa dela. As suas raízes são sírias e não pretende tornar-se uma refugiada ou uma mais uma síria indesejada no mundo ocidental.
Quanto ao regime de Bashar al-Assad guarda uma dúbia posição. Posiciona-se entre um apoio discreto e a perfeita noção da destruição que causou ao país. A protecção que o ditador sírio deu aos cristãos - "salvou a minha vida"- granjeou entre estes simpatia e tolerância perante os seus actos. O facto é que neste momento, há a perfeita noção entre os sírios que al-Assad é um mal menor, talvez um mal necessário.
Quando falo da guerra civil síria ambas têm visões semelhantes. Não foi uma guerra civil, foi uma guerra internacional. Afirmam que não foi só a Síria que participou nela. E têm razão. A lista é surpreendentemente longa e variada e não está completa: Rússia, Estados Unidos, China, Irão, Israel, Líbano, Turquia, Grécia, Arábia Saudita, Qatar, Egipto, participaram e quantos outros países também o fizeram mas de uma forma mais ou menos subtil, de uma forma mais ou menos presente, de uma forma mais ou menos insidiosa.  A entrada em cena do ISIS, nos primeiros anos da guerra, uma guerra dentro de outra guerra, veio alargar e piorar o que já era mau, tornar mais confuso o que já não era fácil de compreender, acrescentar ainda mais violência e desespero ao que já existia. Mais caos para dentro do caos.

K. é o símbolo perfeito da ausência de esperança, talvez mais desespero, que a esmagadora maioria dos sírios enfrentam. Jovem, muito bonita, muçulmana, duas filhas pequeninas. Tem um sorriso bonito, terno, maravilhosamente envergonhado mas triste. Percebe-se. Casada, tornou-se viúva, quando o marido morreu no terramoto que afectou Aleppo. Além do marido também perdeu a casa onde vivia e passou a viver numa escola. As três sobreviveram porque não estavam em casa na altura. Tem as duas filhas doentes, uma delas seriamente, e sem dinheiro para as tratar. Trabalha no hotel onde eu estava hospedado e ganha pouquíssimo. O que ganha vai para as filhas. 
Conheço-a quando lhe peço ajuda para abrir a porta do meu quarto que sistematicamente só abre com um truque que nunca consegui descortinar. Fala comigo com um inglês super básico de frases curtas mas ainda assim eficaz para comunicar. 
Peço-lhe uma fotografia comigo, que consigo a custo, prometendo-lhe que não a coloco nas redes sociais. Olha para todos os lados do corredor para ter a certeza que ninguém a vê, leva-me para o meu quarto que já tinha começado a limpar e é lá que tira a fotografia comigo.
Ofereço-lhe cadernos, lápis, borrachas e outras pequenas coisas que tinha trazido comigo para a Síria como travessões de cabelo, para ela e para as pequeninas . O rosto ilumina-se vezes sem conta à medida que lhe vou dando aqueles pequenos presentes. Ajudo para os medicamentos para a filha, mais do que o salário mínimo nacional, uns inacreditáveis cerca de 30 euros.
Há um imenso mundo de distância entre mim e ela. Entre a facilidade com o que lhe dou com a extrema necessidade com que recebe. Tão grande que me sinto culpado por essa mesma distância. Uma sensação que me acompanharia durante toda a viagem pela Síria. Inclusivamente no momento em que escrevo este texto.
Apetece-me abraçá-la, dar-lhe um toque de calor e carinho mas a cultura árabe dificulta o contacto entre homens e mulheres e refreio-me de o fazer. 
Se há alguma confiança e planos com G. e A., que estão claramente acima da realidade média da Síria, K. vive num sobressalto, numa inquietação permanente, onde o dia seguinte é incerto e frágil.

Geopolítica, geoestratégia, terrorismo (organizações como o Hamas, Hezbollah, ISIS, Al-Qaeda ou a Irmandade Muçulmana), são palavras intensamente usadas quando o tema é Médio Oriente. E inevitavelmente a Síria acaba por ser mencionada. Tudo vem desaguar a este país. 
Não há ninguém que não queira a sua quota-parte de influência, de disputa, nesta pedaço de terra que parece amaldiçoado. 
Quando se mistura uma ditadura repressiva com superpotências mundiais, interesses militares e religião, petróleo e dólares, políticas e ideologias, o resultado final é de facto uma maldição. 
E sem fim à vista.










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