ilha Arwad, Síria - debaixo dos meus pés, cinquenta séculos me contemplam

De Tartus à ilha Arwad são cerca de três quilómetros e meio que um barco que leva cerca dez a doze pessoas demora cerca de quinze a vinte minutos a percorrer.

A ilha tem cerca de 1.5 km de comprido por cerca de 500 metros de largura. Arwad é um pequeno ponto rochoso no Mediterrâneo. E é a única ilha habitada na Síria. Se dito desta forma, dá a impressão que ser habitada é algo menor, quando vamos à procura da história, esta contam-nos que já existe gente a viver aqui desde há quase cinco mil anos. E os primeiros a fazerem-no foram os fenícios. Bem, não exactamente estes mas antes os cananeus. Terão sido os primeiros habitantes da ilha. No entanto foram os fenícios que lhe deram relevância.

Por estar isolada do continente, pelas suas dimensões e (actualmente) uma fraca localização estratégica, a ilha escapou aos horrores da guerra civil e da permanência do ISIS.
Não verei a destruição, ou cartuchos vazios de balas, que já tinha assistido em Ohms e Aleppo. Viver em Arwad não tem antes nem depois após guerra. É uma linha contínua onde a vida corre devagar e sem sobressaltos. São raros os ocidentais que visitam a ilha. A chegada dos ferrys leva e traz habitantes, carrega e descarrega mantimentos e equipamentos diversos.
As ruas são estreitas, as casas têm um aspecto degradado e vêem-se ruínas tanto causadas pela história como pela falta de manutenção e abandono por parte do homem.



A viagem foi atribulada. Se não enjoei nesta viagem, dificilmente enjoarei noutra qualquer. 
À saída do porto, comecei sentado na proa da embarcação. Saímos pacificamente do porto. A ondulação era suave e apenas uns salpicos caíam no meu rosto. O meu excesso de confiança rapidamente acabou. 
O vento estava forte e contra a marcha do pequeno barco. A proa subia e a descia abruptamente pelas ondas que o abanavam fortemente. Se comecei sentado, de pernas cruzados e apenas salpicado, em poucos minutos estava agarrado com toda a força a tudo o que podia e encharcado. Era uma questão de minutos até eu ir à água. O piloto percebeu a minha situação e só consegui ir para dentro da cabina quando ele praticamente parou o barco. Aliviado por estar em segurança, rio-me nervosamente para o capitão, um homem balofo e de rosto rubicundo, que nem pestanejou ao olhar para mim. Indiferente, empurrou uma manete para a frente e deu potência de novo. 

Desvio-me de gente atarefada no pontão. Um bando de miúdos olhava para mim com curiosidade. Três homens, sentados em tambores de plástico de várias cores unidos por uma tábua de madeira corrida, faziam o mesmo mas fumando shisha. Viro à direita, cruzo-me com uma barbearia com um cliente no seu interior e começo a caminhar pela ilha. Aqui não há carros. Faz-se tudo a pé. 


Embrenho-me por um labirinto de ruelas estreitas, de pessoas que as sobem e descem. E crianças de novo. Há muitas aqui. Não há assédio para comprar o quer que seja mas a sua curiosidade parece ser infinda. Mostram-me o irmão ou a irmã, pequenas coisas que levam nas mãos, agarram-me a minha e querem levar-me para um lado qualquer que só elas aparentam conhecer- é o que dizem- ou mostrar a sua casa. 
Há disputas por causa desta curiosidade. Tento acabar com elas, mostrando com a mão um pretenso caminho que pretendo seguir e sem desvios.

Ao longo da ilha é fácil perceber que os seus habitantes vivem, essencialmente, do turismo, da pesca e fabrico artesanal de barcos.
O turismo desapareceu com a guerra e assim continuou depois com a pandemia. Agora está a retomar. Principalmente o interno, o local, aos poucos poucos, pontualmente com estrangeiros. Restaurantes, peixarias, cafés e discretas lojas de artesanato estão presentes por todo o lado. 
Mas ouço lamentos. Dizem que a construção de barcos está desaparecer. São cada vez menos as pessoas que os fazem por não serem economicamente viáveis. 
O comércio marítimo é praticamente inexistente. Os barcos de pesca e de transporte de turistas e de locais já não justificam que tanta gente trabalhe neste ofício. As falhas frequentes de electricidade dificultam muito trabalho e tornam-no excessivamente físico.
Tal como a pesca, a construção de barcos está profundamente ancorada na multi milenar história da ilha, nos seus primeiros habitantes, os fenícios. Navegadores e comerciantes por excelência, são um povo originário da Síria, do Líbano e Israel.

A ilha é de facto pequena e não há como nos perdermos nela. Mas se a sua dimensão é diminuta, a história está no seu oposto. 
Caminho lentamente, ainda com algumas crianças no meu encalço ao local desejado, bem junto ao mar: a muralha fenícia da ilha....ou o muito pouco que sobra dela. É aqui que encontro a "grande" história: as ruínas da antiga muralha fortaleza erigida pelos fenícios.
Os números são tão grandes quanto a sua idade: cerca de três mil e oitocentos anos, seis a dez metros de altura e dois quilómetros e meio de comprimento. Imagino-a com uma mini grande muralha da China de Arwad mas construída por navegadores e comerciantes. Dela, restam estes imponentes blocos de pedra e outros anonimamente caídos ao longo da costa da ilha. Sinto sempre um grande respeito, admiração, reverência até, quando algo ainda subsiste com esta magnitude de tempo. Creio que desde as grandes pirâmides egípcias que não estava perante algo que fisicamente passava dos três milénios de existência. 
Faço-lhe uma discreta vénia com a minha cabeça e dedico-lhe a minha atenção durante vários minutos. Os miúdos entretanto desapareceram.
Duzentos metros à frente, à minha esquerda, pouco imponente mas igualmente roído pelo tempo e igualmente esquecido pelos homens, está um hamam otomano, um banho turco. Uma importante presença de outro dos povos que aqui deixaram a sua cultura e influência. A minha primeira impressão é que se tratava de um antigo forno de pão. Pouco sobra dele.



Olho à minha volta. Vejo as casas, lixo no chão, algumas pessoas nas suas rotinas, o mar que bate na antiga muralha e aquilo que eu pensava ser um forno. Apercebo-me do local onde estou. Sinto-o profundamente em mim. 
Recordo a famosa frase de Napoleão quando olhando para as pirâmides egípcias afirmou: "do alto destas pirâmides quarenta séculos vos contemplam". Parafraseio-a - "debaixo dos meus pés cinquenta séculos me contemplam."

Arwad é uma ilha movimentada historicamente. Tem cinco mil anos de história. Uma longa de linhagem de povos com as suas culturas, hábitos e crenças estiveram presentes na ilha.
Naturalmente, a história de Arwad começa bem cedo, em 3000 aC, com os cananeus, um povo semita com origens na zona do Levante, a habitarem a ilha. Depois deles, os povos sucedem-se quase interminavelmente: fenícios, egipcíos, persas, gregos, romanos, árabes, cruzados, mamelucos, otomanos e depois os franceses com o fim da primeira guerra. Só em 1946 é que Síria, retoma a independência e com ela a ilha de Arwad.
Pelo menos quatro diferentes religiões: os diferentes politeísmos cananeu, fenício, egipcío e romano (estes ainda não eram cristãos), o zoroastrismo persa, cristianismo e o islão.

Prossigo o meu lento cirandar pela periferia da ilha. Alguns blocos da antiga muralha ainda sobrevivem caídos no paredão.
Encontro a frase I love Arwad pintada em letras vívidas numa fachada algo mal tratada de uma casa que ostenta um branco remendado. 
Um grupo de turistas perfila-se para a clássica fotografia. A coisa demora. Os telemóveis e as máquinas fotográficas não cessam de passar de mãos em mãos. Espero pacientemente que se vão embora para eu tirar a minha.

A ilha mostra-me a sua face, a sua essência mais antiga e milenar: artesãos a recuperarem e a fabricarem barcos. Aproximo-me. Aceno e caminho lentamente por entre eles. Vejo as suas mãos a dançarem em suaves curvas sobre as vigas de madeira com trinchas, plainas, lixas e serras eléctricas. Por entre o cheiro da maresia, noto o cheiro das aparas de madeira, das tintas e dos vernizes.
As casas oscilam entre o bom estado e o estado abandonado com algumas a meio caminho entre os extremos. Fecho a periferia da ilha. Pelo meio faço uma subida à Citadela fortificada. Igualmente erigida pelos fenícios, provavelmente no século 8 aC, proporciona uma vista panorâmica sobre a ilha e nos dá a sensação do que significava ter que defender a ilha ao longo de tantos séculos acumulados. 
Um olhar mais atento - ou um guia local - revela sinais da presença, aqui e ali, de quem foi ocupando esta fortificação.






A ilha que escapou ilesa ao ISIS, à guerra civil síria e a cinco mil anos de história, tem no entanto recentes histórias negras para contar. Demasiado recentes, até.
Em Setembro de 2022, um barco partindo do Líbano com sírios, libaneses e palestinianos a bordo, com destino a Chipre, afundou ao largo da ilha. Dos cerca de 120 a 150 refugiados a bordo terão morrido cerca de 90. 
Há demasiadas histórias iguais a esta com uma contagem de vidas perdidas igualmente pesada no Mediterrâneo. Mediterrâneo, sempre o Mediterrâneo. O maior campo de batalha entre quem procura novas oportunidades e quem as recusa dar. O maior campo de batalha entre a vontade, a necessidade de sobreviver e quem vilmente explora, e nega, essa mesma necessidade.

Observo de novo o porto que mantinha o mesmo aspecto atarefado que há umas horas.
Os homens que fumavam shisha já não estão lá e o pequeno bando de putos que me recebeu já tinha esvoaçado para outros lados.
Já no barco, reparo que o capitão era o mesmo. Desta vez, mantive-me sempre no interior da cabine. 
Uma vitória da razão sobre o impulso de desafiar mais uma vez as ondas e o vento. 
Uma espécie de disputa entre o ímpeto suicida dos cruzados contra a racionalidade dos árabes.






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