Lago Titicaca, Peru - ilhas Los Uros, entre a totora e o turismo


Está a pouco mais de 3800 metros de altitude e o seu nome traduzido do quechua significa Pedra do Puma. Situado no sudeste do Peru, na cordilheira andina, e com parte dele situando-se na Bolivia, o lago Titicaca é um local único.
Entre as várias ilhas que se podem visitar, e até pernoitar, no lago, umas das mais procuradas são as ilhas de Los Uros a uns curtos oito quilómetros, cerca de trinta minutos de barco, da cidade mais próxima, Puno.

Crê-se que estes habitantes descendam do povo Pukara, cujas origens podem ser rastreadas, acerca de 1500 aC, ou de acordo com outras fontes históricas será necessário recuar ainda mais no tempo para as encontrar.
O hábito de viverem em ilhas flutuantes de juncos (totora) terá advido da ameaça dos Incas, e depois por parte da invasão espanhola, durante a expansão do seu império (há cerca de 600 anos), invadirem as margens do lago onde anteriormente viviam, empurrando-os para uma vida flutuante no meio dele. A totora tornou-se então um estilo de vida, uma forma de cultura e de subsistência. 


Identificado com a bandeira peruana, que audivelmente chicoteia o ar ao sabor do vento e da velocidade do barco, Puni fica para trás. Cruzamos durante alguns minutos um espelhado plano de água para depois enveredar por canais labirínticos. Nas suas margens, espalhadas ao longo delas, vêem-se juncos em forma de cones. 
A chegada às ilhas anuncia-se quando começam aparecer cabanas feitas de juncos a rasar a água e a poucos metros dos limites da ilha. Vejo vários barcos ancorados. As suas proas estão decoradas com cabeças de animais, que mais tarde soube que representam pumas.
Os seus habitantes mantêm, ainda hoje, um estilo de vida romântico e invulgar mas cada vez mais se torna também um estilo de vida interesseiro muito por conta da massificação do turismo.



A passagem do meio do lago para uma maior proximidade às margens do lago, e a Puno, aconteceu em meados da década de 80, concretamente em 1986. No decorrer de um fenómeno meteorológico regular, particularmente forte e chuvoso, o El Niño, estas ilhas estiveram em sério risco. Várias foram perdidas, levadas pelo vento, e outras inutilizadas ao absorveram mais água do que eram capazes. A necessidade de ajuda levou os ilhéus a aproximarem-se de novo das costas do lago Titicaca.

Esta aproximação à cidade trouxe-lhes vantagens e desvantagens. Tornou-se tentador para estes ilhéus procurarem o conforto da cidade: melhores condições de vida, educação, saúde e emprego. 
São cada vez mais os que deixam as ilhas para se moverem para Puno, depois para outras zonas do país e até a considerarem partir para fora do Peru.
Se esta proximidade coloca o seu tradicional estilo de vida em causa, trouxe-lhes por sua vez mais turistas para as suas ilhas, o que necessariamente não tem que ser algo particularmente positivo. Ou, se quisermos, olhando pelo lado filosófico da questão, será um mal menor. Se os coloca numa "montra" turística que os desvirtua, em contrapartida podem aspirar a melhores condições de vida.
Paradoxalmente, apesar do peso cada vez maior do turismo, poucos falam o espanhol (muito semelhante ao castelhano) e menos ainda o inglês. É a língua nativa das regiões andinas bolivianas e peruanas, o aymara, a mais falada por quem nos recebe nas suas ilhas.

Outro factor começa estar cada vez mais presente com maior influência e impacto, de uma forma cada vez mais premente e mais difícil de gerir que a massificação do turismo: as alterações climáticas. 
Estas adicionam uma séria dificuldade à vida dos seus habitantes. Desta vez na direcção oposta. Não é a chuva excessiva mas antes a seca e o calor intenso que aumentam e se prolongam de ano para ano. Estes fazem diminuir o ciclo de crescimento dos juncos, fazendo da mesma forma diminuir a sua disponibilidade colocando em causa a capacidade de fazer a manutenção das suas cabanas e ilhas e garantir a necessária biodiversidade para a sua sobrevivência.


Na altura das colheitas dos juncos - há duas ao longo do ano - os homens escolhem os melhores. 
Com uma longa foice cortam um pouco acima do nível da água e põem-nos a secar entre uma a duas semanas. Atam-nos, empilham e entrelaçam os molhos uns aos outros aumentando a sua altura e área. Regularmente, cada duas a três semanas, numa permanente manutenção, substituem as camadas que se vão degradando e apodrecendo. 
Quando chegam ao final da sua vida, que pode durar cerca de trinta anos, estas ilhas são abandonadas e feitas outras novas. Nunca se sabe ao certo quantas destas ilhas existem mas estima-se que há um número constante que ronda as sessenta a oitenta ilhas.
Para evitar que andem à deriva por todo o lago as ilhas são atadas com cordas a estacas de madeira que foram previamente enterradas no leito do lago. As suas cabanas, mobílias rudimentares, os barcos em que se deslocam e o artesanato produzido são feitos dos mesmos juncos e da mesma forma. 

Vivem dos próprios juncos, que cozinham e os usam como medicina caseira, da pesca do bagre e da truta, da caça de aves aquáticas e dos seus ovos. Têm escolas, postos médicos e quintas de criação galinhas e de patos. Sempre em ilhas.
As cores fortes dominam-nas. O amarelo impera, está presente em todo o lado. As mulheres vestem cores vívidas e saturadas. Vermelhos, verdes, laranjas, azuis, rosas. 
Antenas parabólicas e painéis solares permitiram que abraçassem a tecnologia. Iluminação eléctrica, televisões, tablets e telemóveis fazem parte do seu dia a dia e, inevitavelmente, o turismo tornou-se uma parte importante, senão a única, dos seus rendimentos. 

Saio do barco. O primeiro contacto com o chão das ilhas provoca de imediato uma sensação estranha de falta de solidez. 
É curioso e intrigante caminhar nestas ilhas flutuantes. É como pisar um colchão de água de amarelo intenso. Um chão aparentemente frágil e instável que oscila debaixo do nossos pés, transmitindo a sensação que a cada passo dado os nossos pés vão atravessá-lo e acabarem a chapinhar na água. Esta sensação acompanhar-me-á durante todo o tempo que estive aqui.

Uma senhora convida-me a entrar, naquela que diz ser a sua casa. É pequena e escura. No exterior não vejo paineis solares o que me faz duvidar que tenha iluminação eléctrica. Do lado direito distingo uma cama com lençóis dobrados e uma cómoda. Do lado direito está uma mesa e três cadeiras. No fundo da casa está uma pequena bancada que atravessa toda a largura da casa com diversos utensílios de cozinha. Todo o chão está coberto por uma esteira. Tudo feito em totora, claro. Convida-me a experimentar a cama, que rejeito. Após me mostrar a casa em poucos minutos, a senhora senta-se no exterior e começa a trabalhar naquilo que me pareceu que no fim iria ser um casaco. Desinteressou-se de mim. A missão dela parecia estar cumprida.


Quando um barco chega há sempre alguém, mulheres e crianças, que vêm logo ter connosco a cumprimentar a dizer que se pode fotografar sem problemas e levar as pessoas para lugares já definidos.
E é esse o problema. As ilhas, os seus habitantes, que muitos deles vivem de facto em Puno, abraçaram totalmente os turistas. As visitas guiadas são feitas em modo automático, tal como a senhora que esteve comigo, e as cenas do dia a dia são perfeitamente recriadas ou encenadas para a fotografia. 
O seu artesanato, têxteis, e criações em junco, segue a mesma lógica e já estava previamente exposto em toalhas espalhadas pelo chão. A insistência em comprar algo pode-se tornar incomodativa.

O capitão do barco que me levou até lá já tinha avisado disso mesmo: 
"Se fossemos às ilhas mais interiores, os habitantes não se deixam fotografar, ou mostrar como vivem. As construções são mais toscas, menos bem construídas e não tão limpas. Nelas, o estilo de vida é bem mais duro. Vestem-se de uma forma mais pobre. A electricidade não está presente em muitas delas. Por isso não costumamos levar-vos lá."

Pessoalmente, ir a Los Uros foi apenas fazer um check turístico. 
Ficou a experiência, um vislumbre de um estilo de vida ancestral e único. Sim, estas ilhas existem, sim, é curioso visitá-las e andar sobre elas. Os seus habitantes são habilidosos a trabalhar as canas dos juncos, tal como qualquer artesão a trabalhar outro qualquer  material. A visita a elas começa e acaba com isto. Traz pouco valor acrescentado.
À parte considerações sobre a superficialidade e da falta de autenticidade das suas vidas, tem sido a procura turística a manter e a fixar os habitantes nestas ilhas flutuantes que ainda assim podem vir a ter os dias contados.
Pessoalmente, as ilhas não me fascinaram. Não fiquei com aquela sensação de descoberta que gostamos de ter quando viajamos, dada a sua artificialidade e falta de autenticidade com que estas se apresentam. De verdade também não estava à espera de a encontrar. 


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