Peshawar, Paquistão - a arte dos camiões


É deveras impressionante ver camiões a circular nas estradas do Paquistão. Não só pela sua dimensão mas, acima de tudo, pela exuberância e extravagância das suas pinturas e decorações.
Cada motorista faz do seu camião uma obra de arte, uma forma pessoal de expressão. 
Para ele, é um motivo de orgulho, uma ligação afectiva ao mesmo, uma afirmação de que o seu camião é o mais bonito, o mais atraente, o que mais as pessoas gostam de ver. 
Pode veicular igualmente opiniões políticas, sociais, admiração por um cantor, um ideal que defende ou a que se opõe.

A paixão pela decoração dos camiões é partilhada com os seu vizinhos indianos, mas no Paquistão talvez a elevem a outro patamar. Autênticos murais rolantes mostrando o que é a arte e a cultura paquistanesa. O kitsch abunda. Estrelas de cinema, jogadores de cricket, cantores, flores, animais e caligrafia árabe são a maior parte dos intrincados motivos que os decoram. Espelhos, adesivos, estátuas, pendentes e correntes metálicas fazem igualmente parte do arsenal de decoração. Os paquistaneses designam esta forma de arte por "phool patti".  
Vem desde o século XV e começou como decoração de tapetes. Os principais motivos ainda hoje se mantêm: flores, animais e paisagens. E não se encontram apenas nos camiões. Vêmo-la também nos tuk tuks e até, mais modestamente, nos carrinhos dos vendedores ambulantes.

Uma restauração, uma decoração completa, dependendo do tamanho do camião e dos desejos dos seus donos pode chegar a cinco, seis ou sete mil euros. Uma intervenção mais modesta ronda os dois mil e quinhentos euros.
É muito caro para um país que tem um salário mínimo, em 2022, de 25000 rupias paquistanesas, cerca de… 100€. Decorar estes camiões é de facto um investimento enorme na vida destes homens. 



Nos arredores de Peshawar há uma oficina de pintura e restauro de camiões a céu aberto.
A pintura, ou restauro, é feita de uma forma completamente artesanal mas segue uma lógica de um linha de produção seriada. Postos de pintura, serralharia, soldadura, carpintaria, montagem de interiores e decoração. Quando entro no recinto há uma noto de imediato uma confusão de odores que no entanto são identificáveis.

Não falam inglês. Aproximo-me deles devagar e a sorrir. Cumprimento-os com um respeitoso "Saalam Aleikum" (a paz esteja contigo), levando a mão direita ao lado esquerdo do meu peito. Respondem-me de volta invertendo as as duas palavras. Corro cada um dos postos de trabalho. Observo-os lentamente, próximo deles mas a alguma distância. Não pretendo de todo ser invasivo ou perturbar as suas tarefas no entanto reparo que estão à vontade comigo.

As condições de trabalho são básicas e duras. Pequenos toldos comidos pelo tempo protegem-nos do sol (e da chuva) mas não do calor. Sentam-se em cadeiras, longe de serem confortáveis. Estão mal tratadas, pés desequilibrados, quase sem estofos, esgotadas pelo intenso uso. Por vezes sentam-se só em almofadas.
As tarefas são feitas sem protecção dos olhos, máscaras ou luvas que os protejam da poeira, serradura, dos fumos e do calor que emana das soldaduras. Fumam descuidadamente próximo de latas de tinta, diluentes, depósitos de madeiras e serraduras. 


A actividade está por todo o espaço. Pintam, soldam, martelam, serram e colam. 
Um jovem prepara adesivos termo-colantes de cor vermelha e azul. Aquece-os com um maçarico, ainda quentes coloca-os numa molde que pressiona com o pé direito durante algum tempo, retira-os do molde, coloca-os de lado e alguém vai buscá-los. Sempre em contínuo.
Outro jovem, o mais novo do grupo, está praticamente escondido por detrás de uma pilha, que calculo, com milhares de pequenos recortes de madeira. O seu rosto está pálido, coberto pelo pó que se liberta do seu trabalho. Parece um padeiro. Olhos são absolutamente vazios, inexpressivos. Dolorosamente vazios. Com uma serra escondida pela pilha, recorta uma pequena peça de madeira, atira para um colega seu que está ao seu lado. Recorta, atira. Recorta, atira. Recorta, atira. 
Nesse dia, quando me deito no hotel e revejo as imagens que tirei do dia, paro de o fazer quando ele aparece. Fico perturbado com os seus olhos.



Estes postos estão na periferia do recinto, da oficina. No centro, para onde tudo converge, estão dois camiões em fases diferentes da decoração. Um carpinteiro trabalha num painel de um camião e dois pintores ocupam-se da pintura das laterais de um segundo.

Um deles segurava nas duas mãos um tabuleiro bem recheado de latas de tinta com pincéis lá metidos. Vejo pretos, rosas, amarelos, laranjas, vermelhos, roxos, verdes, azuis. Pousa-o num andaime encostado à lateral direita do camião. Escolhe uma lata de tinta azul claro e com mão direita, com movimentos seguros e encadeados, faz brotar rapidamente semicírculos de pétalas de flores perfeitamente alinhadas para a direita. Inverte o movimento e emparelha-as agora com pétalas para a esquerda.
Além de flores e pássaros vejo-o a pintar paisagens, céus, sol e nuvens,  As omnipresentes bandeiras do Paquistão, foguetões, pássaros e rostos que não conheço. Há sequências de motivos geométricos simples, outros complexos como mandalas e caligrafia com passagens do Corão.


Várias destas decorações ficam aparentemente a meio. Sempre que muda de cor, escolhe uma lata, dança de uma lateral para outra. Não conclui o que começa. Vai pintando por cores. Tenho a certeza que algo vai escapar, vai ficar incompleto.
Nem só as laterais são decoradas. As jantes dos pneus, as abas das rodas são também pintadas.
Gostava de saber como estas pinturas são planeadas, como são escolhidas as cores. Se há catálogos, se há espaço para o pintor improvisar, se este segue algum tipo de guião artístico por parte de quem lhes encomenda o trabalho.

Viro a minha atenção para os carpinteiros. Principalmente para o que estava a lidar com o painel. Ocupa-lhe algum tempo. Cola, martela, lixa. Coloca bordaduras. Quando conclui, pede ajuda para colocar o painel de madeira no lugar. A seguir, destramente esgueira-se por uma janela, sobe para o interior e começa a trabalhar no tecto.

Estou com eles quase uma hora. Quando percebo que chegou a hora do almoço, vou-me embora. A pausa é só deles e muito merecida. Há quem se senta onde está, outros saem do recinto de bicicleta e de mota.



Dizem-me que concluir um camião pode demorar quase um mês. Acredito que sim. Para além das suas simples ferramentas não vejo qualquer tipo de equipamento que os ajude.
Os dias de quem trabalha nestes camiões são longos e extenuantes. No entanto o seu formidável trabalho traz orgulho, cor e admiração às estradas paquistanesas.

Estima-se, baseados em censos recentes, que circularão por todo o Paquistão cerca de duzentos e oitenta mil camiões. São eles que carregam a economia paquistanesa às costas.
Nem todos são decorados e os que são também nem todos são tão profusamente pintados, mas vê-los a circular é extraordinário. Fazem virar sempre a minha cabeça.
São verdadeiramente, literalmente, arte e cultura pop sobre rodas.
Mesmo quando se trata de um carrinho de um vendedor ambulante ou um tuk tuk









Comentários

  1. Não sabia que era assim tão importante, para eles, decorar o camião. É tão bom ler os teus textos. bjs

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    1. Olá Sofia 🙂 É bom é saber que os lês 😊😊. Aproveito para te desejar um Ano Novo 2024 bem Bonito e Tranquilo. Pleno de descobertas, redescobertas e conquistas. Que continues a inspirar-nos, a melhorar-nos. É das pessoas que mais admiro e que mais me inspira em cada viagem que faço. Um beijinho 😘🥂🎉✈

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    2. Um Bom Ano também para ti! O que inspira são os teus textos. Claro que os leio, vou passando por aqui. Um beijinho 😘

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