Homs, Síria - uma cidade do coração


É a terceira maior cidade síria, depois de Damasco e Alepo. Como tudo no Médio Oriente, é antiga de milhares anos e história não lhe falta.
Remonta, com vestígios arqueológicos, a cerca de 2300 a.C, na Idade do Bronze.
Nessa altura chamava-se Emesa. Por ela passaram os gregos liderados por Alexandre, o Grande, o Império Persa, o Império Romano (mais tarde império romano bizantino) e no século VII chegam os árabes vindos da Península Arábica que a tomaram aos bizantinos. Com eles o nome muda para o que ostenta hoje: Homs.

Impulsionada e inspirada pela Primavera Árabe de 2011 tunisina, inicia-se um movimento de revolta contra o regime de Bashar al-Assad. A semente dessa revolta foi plantada em Daraa. Bashar al-Assad reprime-a com uma violência inaudita. Mas não se apaga um fogo atirando mais achas para a fogueira. A revolta espalha-se a todo o país.
É em Homs que esse sentimento de mudança mais se fez sentir, com protestos mais intensos e determinados. É onde os rebeldes mais se concentraram. Quando a guerra civil estala na Síria em 2011, Homs foi das cidades, e províncias, mais atingidas. 
Verdadeiramente devastadora.


Quando me perguntam qual a cidade que mais gostei na Síria, a resposta é rápida: Homs.
Quando a seguir me perguntam porquê, a resposta não sai tão facilmente.
Usualmente faço uma pausa, olho para a pessoa que me fez essa pergunta e respondo "É uma das cidades do meu coração". Segue-se uma segunda pausa e depois explico porquê.
Concretizando. Significa que é uma cidade que deixou um impacto profundo em mim. 
Não tem que ser a mais bonita, pitoresca, a mais atraente, vibrante, organizada ou a mais limpa. Usualmente não são.
Elas têm algo, por vezes difícil de definir, algo que os franceses chamam de "je ne sais quoi", que todas as outras não têm. Despertam em mim a necessidade de protecção e de carinho.
Homs. Descrevo-a com palavras dolorosas: cinzenta, triste, destruída, nostálgica e melancólica, mas resiliente.

Ando por entre ruas e ruelas secundárias. Poucos carros, pouca gente. Maioritariamente velhos a pé, algumas bicicletas e motoretas. As casas estão destruídas e não há sinais de serem habitadas. Uma pequena loja está aberta apesar de ter os seus estores corridos até ao chão. A encimar, uma tabuleta anuncia qualquer coisa em árabe. Certamente o ofício de quem lá trabalha. Por cima da loja os andares estão destruídos. 
Dois senhores conversam em frente a ela. Um, o mais velho, diria que é o dono da loja e um mais novo, com um longo sobretudo preto, que tem na mão uma espécie de rosário muçulmano, a Masbaha que pode ter 33 ou 99 contas. Pelo seu tamanho diria que era de 99, uma por cada nome de Alá e que vai rodando nas suas mãos a bom ritmo.
Retorno ao que me parece ser uma avenida de onde tinha começado. Uma longa fileira de prédios destruídos ou semi-destruídos ladeiam um dos seus lados. Esqueletos em pé desejosos de descansar. Algumas lojas estão abertas, acima delas só escombros. Pergunto-me qual a segurança daquelas lojas com toneladas de cimento quebrado sobre as suas cabeças. A vida tem que recomeçar, reconstruir-se. Aqui, em Homs, tem que ser a partir do nada ou do quase nada. Das cinzas. Tal como uma Fénix.




Caminho em direcção à Mesquita Khalid ibn al-Walid. Um marco importante de Homs e da Síria. 
Khalid ibn al-Walid foi um brilhante comandante militar, estratega e companheiro do Profeta Maomé - um herói para os árabes.
A mesquita albergava o seu túmulo entretanto trasladado para o Museu Nacional de Damasco.
Como tudo em Homs também foi destruída. Dada a sua importância, o seu interior foi totalmente restaurado e a fachada ainda ostenta claras marcas da guerra, mas estava a ser recuperada.
Está vazia. Admiro-a. Sento-me de pernas cruzadas no seu bonito tapete azulado. No centro está ornamentado com um padrão simétrico de vermelhos e brancos. Baixo a cabeça e fecho os olhos. Uns minutos de silêncio, pensamentos vazios, sossego e paz. Só as mesquitas têm este poder sobre mim. Igrejas, templos budistas ou hindus, sinagogas, não conseguem transmitir-me este abrandar do tempo, de suavização de pensamentos.





Acerco-me de um edifício semi-destruído. Chama-me a atenção pela pintura de um músico de alaúde num azul bonito. Uma escadas destruídas pendem sobre a minha cabeça. Boa parte do betão armado desapareceu e apenas sobram os arames de reforço. Desafio (duplamente) a sorte e passo debaixo delas. Circulo pelos escombros devagar, silenciosamente. Como se não quisesse acordar fantasmas ou ser a causa de um pedaço de ruína mais frágil se soltar e cair com estrondo. Chego ao que parece ser uma porta de entrada. Está escuro e há pó no ar. Apenas a luz que entra pela porta a ilumina. Esta projecta a minha sombra no seu interior. Entro dois ou três metros e não passo daqui. Devo estar no hall de entrada e vejo um monte de escombros e vigas de cimento quebradas que obstruem a passagem para o interior. As suas paredes estão rachadas e mordidas por chamas praticamente até ao topo. Poeira iluminada pela luz esvoaça pelo ar. Neste espaço exíguo, sobras de um antigo espaço mais amplo, há um cheiro estranho, bafiento, diria doentio. Uma atmosfera pesada de sons e ruídos abafados. Há terror, temor, ansiedade e certamente vidas perdidas. Um filme desenrola-se dentro de mim e tudo se desvenda nele:

"Os aviões passam ensurdecedoramente e largam as suas cargas mortíferas. Ouvem-se os gritos, os chamamentos e choros. O desespero é palpável, as pessoas perdidas sem saber onde se refugiarem, onde se abrigarem. Dormem nas ruínas ou procuram caves para dormir. Medo de andar nas ruas por os snipers poderem estar em qualquer lado.
Não há electricidade. A escuridão assusta. A mente, em alerta, navega por entre vagas de inquietação por tudo o que se passa e se passou nesses dias, semanas, meses. Dorme-se mal, em sobressalto constante. A noite, o medo é iluminado pelos bombardeios, clarões de espingardas e metralhadoras. Os sons parecem intensificarem-se nesta altura. As mãos tapam os ouvidos. Os olhos abrem-se enormemente para perscrutar a noite. Não sabem para onde fugir. Na realidade não há por onde fugir. A noite traz consigo o pânico, sempre. A madrugada parece ser mais acolhedora, mais pacífica. Durante o dia tudo se intensifica: ataques, bombardeios, tiros, gritos.
Procuram comer, algo para fazerem fogueiras para cozinhar e se aquecerem. Tudo o que apanharem serve. No desespero da fome procuram por ratos, pombos, rações de animais. Cozinham erva e cascas de árvores. Fervem a água que encontram para evitar doenças.
As doenças alastram, a desnutrição é generalizada, a prostração, o cansaço e a luta pela sobrevivência esgotam-os física e mentalmente. Vivem na incerteza do momento seguinte. Todos oscilam constantemente entre a morte e a vida. Todos perderam familiares, maridos, mulheres, amigos ou conhecidos.
Não há saneamento básico. Hospitais destruídos ou sem meios e condições para tratar o gigantesco fluxo de doentes e feridos. A educação parou."


Isto aconteceu incansavelmente entre 2011 e 2014, quando o exército de Bashar al-Assad, capturou a cidade aos rebeldes após um impiedoso cerco de três anos - o Cerco de Homs - onde os meios de sobrevivência ficaram praticamente reduzidos a nada. No fim, o exército sírio negociou com os rebeldes. Estes retiraram-se da cidade e al-Assad levantou o cerco. Entre civis, rebeldes e o exército sírio, perderam-se qualquer coisa como 28000 vidas. Principalmente entre o primeiro grupo. São sempre os inocentes que mais sofrem. Os números são oficiais, não reais.

As ruas sucedem-se. Numa parede de uma casa encontro uma pintura, de cores desbotadas que diz "Back to Homs". Tem representados um balão de ar quente, um avião e um autocarro. As inevitáveis marcas de balas estão presentes. Uma data contextualiza a pintura, 07.09.2014. O cerco terminou em Maio desse ano. A mensagem é clara: regressem a Homs estejam onde estiverem.
Apesar do incentivo da mensagem poucos regressaram. À cidade e ao país.
Nessa mesma rua, um tremendo sobressalto. Aquilo que pareciam ser tiros, com os seus clarões, começam a soar e em rápida cadência. "Combates" foi o que pensei no imediato. Encolho-me em plena rua. Os locais que passavam procuraram de abrigo de imediato. Vi alguém a correr na direcção dos tais tiros e um senhor sai da sua mercearia e rapidamente põe-me lá dentro. Os clarões e os tiros continuavam a serem ouvidos de uma forma irregular. O senhor da mercearia, de barba mal aparada e bigode, mas este mais farto que a barba, aponta para os cabos eléctricos que balouçavam e imitava o som que estava a ouvir. Foi quando tocou com os dedos uns nos outros é que percebi o que se passava: curto-circuitos.
Os cabos eléctricos estão em más condições. Quando zonas não protegidas destes cabos tocavam, o que era frequente, umas nas outras faziam curto circuito e ouvia-se os tais "tiros" e clarões. As pessoas fugiam das ruas para não serem atingidas por arcos-eléctricos. Foi por isso que o merceeiro me tirou da rua tão rapidamente e o senhor que eu tinha visto a correr tinha ido desligar algo num sítio qualquer. Esperamos mais uns minutos e o senhor abre-me a porta da mercearia, aponta para a rua e diz-me: "now, safe". Saio. Se continuasse, teria que virar ou para a esquerda ou para direita. 
O lado esquerdo era onde os curto-circuitos tinham ocorrido. Para a direita afastava-me dos "tiros", mas os cabos eléctricos eram os mesmos passando num caos de direcções e formando nós entre si. Esta situação deveria muito acontecer frequentemente. Vento, chuva, má manutenção, ou falta dela, e postes de electricidade fragilmente cravados no chão e tudo acontece de novo.
Pelo sim e pelo não opto por voltar atrás.


Numas das artérias principais da cidade encontro o movimento que ainda não tinha visto. As horas tinham avançado e agora parece ser aquilo que chamaria de hora de ponta. Carros sobem e descem, as buzinas fazem-se ouvir. As bancadas de rua que vendem fruta, vegetais, refrigerantes, roupa, especiarias. As pessoas estão atarefadas e cruzam a estrada cujas vias estão separadas por pequenos separadores de cimento danificado. Uma mesquita faz ouvir o seu chamamento para oração. 
Apesar do movimento, a cidade não vibra. Está mortiça. Tem vida mas não tem chama. Há um manto intangível de inquietação e de memórias sofridas demasiado vívidas, mas que se vê e se sente.


Estou atento aos rostos com que me cruzei desde que cheguei à cidade. Semblantes pesados, olhos tristes e focados no chão. Olham-me com alguma desconfiança ou neutralidade. Percebo que as marcas da guerra vão bem mais além que as que estão nas paredes e estão por sarar.
Tenho estado contido com a máquina fotográfica. Não quero que me vejam como um voyeur, alguém focado no macabro. Fotografo apenas as tais ruas secundárias.
Desço a rua e encontro dois telefones públicos baleados, destruídos. 
Um senhor vende fruta, vegetais e frutos secos numa banca onde compro um pequeno saco com uma mistura destes últimos. Recuso o troco. Sorri e pergunta-me de onde venho. Respondo e não gritou por Cristino Ronaldo. De alguma forma fico aliviado, consistentemente associam a Portugal ao futebol. Algo que sempre me desagradou. Não se deixa fotografar mas mostra-me com orgulho um molho de rabanetes que tinha estado a atar com uma fita de ráfia.  Cumprimenta-me efusivamente e diz-me adeus.



Não vejo como esta cidade e outras, possam ser reconstruídas ou recuperadas. Pelo menos no médio prazo.
O esforço financeiro é tremendo, os meios físicos para reparar a devastação de uma guerra civil são escassos. E a Síria está longe de possuir uma estabilidade política que a permita fazer planos a curto prazo e muito menos a longo prazo. 
Passaram-se nove anos desde o fim do cerco até à minha chegada a Homs.
Tudo o que vejo e sinto, diz-me que tudo acabou apenas há um par de semanas.






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