Gosto genuinamente de cemitérios.
Gosto de saber como os meus anfitriões lidam com a morte, quais os seu rituais, quais as suas mensagens, as suas estéticas, como a religião molda a nossa última morada na Terra.
De longe, não é um gosto macabro, um turismo macabro, mas antes perceber uma parte fundamental e intrínseca da cultura e tradição do país que visito.
Prosaicamente, vejo como seria a minha última casa se vivesse nesse país.
Atraem-me particularmente os cemitérios que se estendem pela vastidão do tempo onde, sobre os sete palmos de terra, também repousam largos séculos de história.
A Arménia é um país incrustado entre outros países. Não tem mar, logo não tem costa marítima e desconhece o significado de maresia, algo tão querido à esmagadora maioria dos portugueses.
Mas tem algo que os arménios chamam, orgulhosamente, um "mar": o Lago Sevan. É uma parte incontornável da Arménia.
Diz-me uma senhora que trabalhava numa pequena loja de recordações, num orgulho indisfarçável, e que mais tarde me deixaria fotografá-la, que em termos de dimensões o lago representa cerca de metade do Luxemburgo.
No seu perímetro há alguns dos pontos mais interessantes a visitar na Arménia: pelo menos três mosteiros - Sevanavank, Hayravank e Makravank - e um cemitério.
Expectavelmente o sufixo "vank" significa de facto mosteiro. Os três valem a pena serem visitados, mas, pessoalmente, o local mais fascinante é o cemitério de Noratus. Precisamente onde essa loja de recordações e artesanato se localizava.
De origem medieval, este cemitério terá sido estabelecido entre finais do século IX até finais do século XVII. E o que o torna tão interessante? As suas estelas, que em arménio são chamadas de "khachkars" que por sua vez se pode traduzir como pedras-cruz.
São pedras tumulares, feitas com o material que constitui a paisagem que nos circunda: tufo e basalto, ambas de origem vulcânica. As que são feitas com tufo, são leves e porosas, as de basalto apresentam a característica cor escura que não esconde a sua origem.
Não há arcos, portões, muros, degraus ou alguma forma de limitação física. Apenas uma área de terra por onde se avança e se caminha entre as estelas. Nada mais simples. Sem ostentações.
Talvez por isso, a introspecção, a melancolia, que tipicamente associamos a um cemitério não esteja presente. Não há frases saudosas, de pesar, ou de saudade eterna. Elas são substituídas por admiração e respeito pelo esforço e tempo que mestres artesãos investiram na decoração destas estelas.
Olhando à minha volta são as pedras de tufo que dominam. Um material abundante, friável, não tão duro como o basalto, fácil de trabalhar, de criar detalhes intrincados, mas resistente como um guardião da memória dos tempos. Expostas aos elementos, século após século, esta pedra ganha uma paleta variada de laranjas, vermelhos e ocres.
De viagens anteriores, outros lugares e outros países, sabia que estas colorações se devem à presença de ferro que depois se oxida, tornando a pedra "ferrugenta". Quanto mais laranja, mais óxido de ferro existe na composição da pedra. Tal como nas areias do sublime Deserto do Namibe.
As estelas são às centenas. Estou rodeado por elas. São um tapete que estende um pouco por todo o lado.
Umas estão na vertical, outras na horizontal, deitadas discretamente na terra meio tapadas pela vegetação rasteira. Como que tivessem sido plantadas, que cresceram brotando da terra. Não há um espaçamento fixo ou uma geometria pensada entre elas.
Todas estão trabalhadas apresentando motivos, e significados, variados: cruzes e rosetas, flores, ramos, videiras e uvas, animais e cenas do quotidiano. Memória e arte fundem-se no cemitério de Noratus.
São estes detalhes que procuro. A cor laranja e as centenas de séculos que se acumularam sobre estas khachkars torna difícil identificar os motivos. Ocasionalmente agacho-me e demoro algum tempo a tentar identificá-las.
Sinto a tentação de as tocar. Sentir o seu tempo, a insistência corrosiva do sol, da chuva e do vento arménio sob a ponta dos meus dedos. Resisto. Parece-me um sacrilégio fazê-lo. Há uma imensa dignidade multi-secular, quando o tempo se acumula sobre si mesmo, nestas estelas.
Vejo uma pequena capela, simples mas sólida. Das poucas coisas deste cemitério que não é uma pedra-cruz, apesar de estar totalmente rodeada por elas. Uma pequena ilha.
A traseira é uma parede em tijolos de pedra, de cima a abaixo. Sensivelmente a meio tem um discreto rasgo em forma de cruz. Creio ser uma janela.
Ao lado do cemitério por onde caminho, situa-se um outro, o actual.
Neste encontramos khachkars numa versão contemporânea e empobrecida. A diferença não poderia ser maior. O novo cemitério está limitado, existe uma vedação, utiliza materiais não locais como o granito ou o mármore, a pedra está polida e a escultura, a arte, foi substituída pela representação literal e mais mundana. Perde-se o anonimato, a arte, e ganha-se o concreto. No lugar da simbologia, dos significados escondidos e da sua beleza real, surgem agora os rostos e as datas em que as suas vidas foram materiais. Menos espiritual, menos poético, mais egocêntrico e frio. Definitivamente os tempos mudam.
Os dois cemitérios formam um contraste gritante. Dois universos paralelos que coexistem simultaneamente geograficamente mas em janelas temporais bem distintas.
Vou à loja das recordações. Retiro alguma informação sobre datas, os significados dos motivos esculpidos nos tufos e o nome da capela que me tinha cativado, numa infografia pendurada na parede e desbotada pelo tempo.
Converso com duas das três senhoras que lá estão. Pergunto se têm mais infografias como a que está na parede para comprar uma igual. Não têm. Nela, descubro que a capela se chama Surb Grigor (São Gregório) e a data da sua construção situar-se-à algures nas primeiras décadas do século XIII.
Uma das senhoras, muito divertida e exuberante, diverte-se plenamente com as minhas tentativas de a fotografar e uma outra, mais contida, de sorriso tímido e de olhos muito doces com quem, rapidamente, consigo a fotografia que desejava.
A primeira senhora estava a tricotar quando falei com ela sobre as fotografias. Comecei por fotografar as suas mão hábeis e rápidas com as agulhas. Quando acabei a sessão, entregou-me as agulhas e tentou-me ensinar a tricotar. Entre gargalhadas, genuinamente, tentei seguir as suas instruções. Um absoluto e hilariante, desastre. Não consegui dar mais que dois pontos consecutivos. Rimo-nos a bom rir, umas boas gargalhadas.
Agradeço e saio da loja ainda a rir-me com vontade. Tenho a certeza que a senhora estava a desfazer aqueles dois pontos.
O histórico cemitério de Noratus é uma santíssima trindade, mas não aquela que tradicionalmente reconhecemos, em si mesmo: o tempo que oxida uma pedra, a arte que esculpe uma pedra-cruz e a fúria telúrica vulcânica que deram origem à pedra que semeia tão profusamente este espaço.
Um cemitério deveras curioso que além de uma teologia ou crença, a ortodoxa, vale pela sua arte.
E por estar próximo do "mar" da Arménia.
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