Camboja, Killing Fields - a demência de Pol Pot (III)


"É sossegado e calmo. Parece um jardim". Foi assim que Jéssica, uma australiana, descreveu o local, olhando em redor. Na verdade, assim era.
Cruzando o portão de entrada, um caminho cinzento, parecido com uma calçada, bordejado pelo verde da relva que dominava todo o local leva directamente ao Memorial, uma stupa budista.
Do lado direito deste, uns poucos metros à sua frente encontrava-se um pequeno museu.




Espalhadas um pouco por todo lado, árvores derramavam a sua sombra. Pequenos trilhos bem abertos e definidos permitem a circulação das pessoas por todo o sítio.

Sigo atrás de Vuthy, o guia de Tuol Sleng. Observo que o verde da relva é manchado por inúmeras depressões de tamanhos variáveis, que agora são poças de água barrenta de terra. Estamos no final da estação das chuvas.
Vuthy pára em frente a uma delas e avisa "Não sair fora dos trilhos, são valas comuns". Acrescentando "ainda existem pessoas enterradas lá".




Com estas palavras, o guia rompe definitivamente com a aparência pacífica e tranquila do local.
Ao fim e ao cabo estou num centro de extermínio, o mais conhecido dos "killing fields" do Camboja: Choeung Ek.
Como todos os locais tocados pelos Khmers Vermelhos, tem um passado brutal, cheio de dor e hostil.

Situado a cerca de 15 km a sul de Phnom Penh, este "kiling field" era alimentado pela prisão de Tuol Sleng.
De lá, vinham os mortos que já não tinham espaço para serem enterrados no pátio, vinham os moribundos para acabarem de morrer e os vivos para serem executados.

Os prisioneiros chegavam a este centro de extermínio de camião. Vinham atados e de olhos vendados. Saíam do camião e eram encaminhados para as valas comuns. Ajoelhavam virados para elas, os guardas batiam-lhes na cabeça e caiam sobre a vala. Faziam isto em série. Dia após dia, durante anos.
Para impedir a propagação de doenças e simultaneamente acabar de matar os moribundos, espalhavam DDT sobre os corpos caídos.

Com a continuação das explicações de Vuthy, o espaço verde onde estou, fica na minha imaginação tingido de vermelho. As árvores perdem a sua inocência e tornaram-se utensílios de morte e tortura. Chamam-lhes as "killing trees".




Encaminhamo-nos para uma delas. Tem um letreiro em inglês que incredulamente leio: "árvore onde os carrascos espancavam as crianças".
Sob a protecção dos seus ramos está um memorial.
Um pequeno recinto delimitado com uma pequena cerca de madeira. Encontro outro letreiro: "local onde estão enterradas pessoas sem cabeça".

Neste local as crianças eram retiradas às mães que as seguravam e protegiam, eram atiradas contra a árvore ou esmagadas contra ela. Ou atiradas ao ar e eram apunhaladas na queda. As mães assistiam à sua morte, e depois por sua vez, elas próprias eram espancadas e mortas por decapitação, com machados, ou decapitadas depois.

Outra árvore. Os prisioneiros eram amarrados e espancados até à morte. O método preferido pelos Khmers Vermelhos que não queriam desperdiçar preciosas e caras balas.
Usavam bastões, pás, machados, barras de ferro, troncos e facas. Muitos dos crânios mostram claras evidências de perfurações.
Ainda uma outra. O seu letreiro diz que um altifalante era pendurado com música alta. Canções da revolução khmer. O seu objectivo era sobrepor-se aos gritos e gemidos dos que morriam nas valas comuns para que as pessoas que trabalhavam no cultivo de arroz nos campos adjacentes não suspeitassem do que estava a ocorrer.

A caminho do Memorial, Vuthy faz uma última paragem para falar sobre os restos mortais numa área igualmente delimitada. O letreiro informa que se tratam de ossadas e dentes.
Ainda nos dias de hoje continuam a aparecer restos mortais. É o tempo a fazer o seu trabalho. O sol e as chuvas fortes vão erodindo o solo, trazendo ao de cima, ossos, dentes e alguma roupa. Destacam-se do castanho da terra pela brancura que exibem.




O Memorial, uma stupa budista começou a ser construído em 1988 e foi concluído em 1989. Tem 62 metros de altura e foi desenhado pelo arquitecto Lim Ourk.
As stupas, segundo a crença budista são estruturas sagradas. Templos ou parte de um monumento, em forma de torre que pode ser abobadada ou semi-esférica, que contém restos mortais de um indivíduo, normalmente alguém importante, de uma família ou de um colectivo.

Neste caso, é uma homenagem às cerca de 17 mil vítimas assassinadas em Choeung Ek. Expõe numa coluna central que se ergue até ao topo do monumento e ocupando praticamente toda a área interior, simbolizando o eixo do mundo, cerca de 9000 crânios de vítimas da atrocidade inaudita dos Khmers Vermelhos.
Os andares mais baixos, separados entre si por prateleiras de vidro, estão frequentemente abertos, permitindo uma observação directa dos crânios e de algumas das roupas usadas pelas vítimas.




No seu pico, "a produção de morte" de Choeung Ek, chegava a atingir cerca de 300 execuções diárias. Nem sempre os carrascos conseguiam dar conta "do recado". Incrivelmente, por isto, muitos deles foram presos por traição e falta de lealdade ao regime e posteriormente executados.

Saio, dirijo-me para o museu, e depois para a saída.

À saída do "killing field", faço um esforço de imaginação e reabilito as árvores, que recuperam a inocência perdida.
Pela segunda vez naquele dia, saio pensativo de um recinto. E pela segunda vez, uma pergunta insiste em não ter resposta: porquê ??!!


Comentários

  1. um dos meus sonhos um dia poder ir ao camboja,pelas fotos deve ser lindo a vontade de ir é cada vez mais.

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  2. A história recente do Camboja é violentíssima. Só nos últimos 10-12 anos encontrou a paz e estabilidade.
    Mas felizmente o Camboja é mais que Pol Pot e Angkor. Tem paisagens lindas, aldeias e cidades cheias de encanto. Está cheio de gente afável e sorridente. Tentarei mostrar isso nos próximos posts.
    Sim, se puderes vai até lá. O Camboja é um país que está à espera de todos nós. Será pelo turismo que ele se irá reerguer. E não te vais arrepender. :)

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