Musanze, Ruanda - Mr Bwenge, I presume

Os gorilas da montanha (gorila beringei beringei) vivem em estruturas sociais relativamente simples. Tipicamente uma unidade familiar é constituída por um macho de dorso prateado, que lidera, três fêmeas, entre três a cinco crias e pode eventualmente existir um ou dois gorilas machos de dorso preto no grupo.

Não são excessivamente territoriais. Podem ser encontrados a altitudes entre os 2500m a 3500m. Os conflitos são ocasionais e quando surgem é mais por motivos de defesa da unidade familiar do que do território, uma vez que este pode ser partilhado por mais que uma família.
Alimentam-se de raízes, cascas de árvores, pequeno caules, folhas, fruta e ocasionalmente pequenos invertebrados.

Um macho adulto de dorso prateado pode atingir os 160 a 190 kg  e adquire a sua característica pelagem prateada no seu dorso quando atinge a idade adulta, entre os 12 anos e 13 anos. Altura em que se separa da sua família para ir formar a sua própria família.
As fêmeas por sua vez atingem os 80 a 90 kg.
Em pé um gorila médio pode medir entre 1.40 a 1.80 m e tem uma esperança média de vida da ordem dos 35 anos.
As fêmeas têm um período de gestação de cerca de nove meses e têm em média uma cria. 
Tal como os seres humanos, as suas impressões digitais são únicas.

Na década de 90 durante o genocídio ruandês e a guerra civil do Congo, os gorilas da montanha estiveram praticamente extintos. Com a chegada de alguma paz à região, estabilidade política e o trabalho na década de 80 da zoóloga americana Dian Fossey na divulgação e protecção desta espécie de primatas superiores, os gorilas têm vindo muito gradualmente a subir o seu número. 
Os censos mais recentes apontam para um número a rondar os cerca de 780 indivíduos e com tendência a aumentar.

No entanto, eles ainda hoje enfrentam três grandes ameaças. A desflorestação do seu habitat devido à pressão urbana, a exploração do petróleo, carvão e gás na região do Parque Nacional Virunga e a caça furtiva.


Os contactos via rádio tinham vindo a aumentar, à medida que o grupo ia subindo.
A dado momento Felix vira-se para nós e falando em voz baixa, diz que já nos tinha alertado que tal poderia acontecer.
E explica - os batedores avisaram que os nossos gorilas se tinha embrenhado excessivamente na floresta e estava para além do poderíamos.

Sabia que não era garantida a sua observação, mas não estava verdadeiramente preparado para esta eventualidade.
Os meus olhos perscrutaram a zona à minha volta com angústia.
Poucos metros à minha frente o guarda que nos acompanhava estava parado com a coronha da espingarda pousada no chão junto aos pés com a mão direita a segurá-la pelo cano.
Alguns metros à sua esquerda, via pela primeira vez os batedores. Eram dois, silenciosamente estavam lado a lado, segurando cada um deles um walkie talkie.

Eles mal se percebiam no verde denso da floresta. Bonés verdes, envergavam o que parecia ser um oleado verde e estavam de galochas igualmente verdes. Apenas as camisas escuras, uma azul e a outra preta, que se percebiam por baixo dos oleados manchavam o verde do conjunto.
Felix continuava a falar, mas não lhe prestava atenção. Os meu olhos continuavam à procura de algo que não conseguia ver. Via o topo das árvores, os ramos, a vegetação rasteira.

Foi um restolhar e um abanar súbito de ramos, talvez a uns quinze ou vinte metros de mim que chamou a minha atenção.
Dois braços bem negros e peludos emergiam das folhas. Voltaram a abanar os ramos, soltaram-se e desapareceram na vegetação.
Voltei a cabeça para Felix e este olhava para mim a sorrir. Eram eles! Eles estavam ali!

Deixámos as nossas mochilas com o guarda e embrenhámos-nos no verde luxuriante da floresta.
Pensei mentalmente numa das recomendações de Felix - falar baixo. O bater do meu coração ribombava como um tribo a bater com paus grossos em troncos ocos de velhas árvores caídas. Era impossível os gorilas não o ouvirem.

Com alguns metros caminhados e uns quantos ramos afastados, vi à minha frente um imponente dorso prateado. Um gigantesco arrepio percorreu cada milímetro do meu corpo.




De costas para nós e ignorando completamente o grupo de basbaques que olhavam para ele com ar extasiado, o enorme gorila da montanha comia e segurava delicadamente nas suas enormes mãos (não vou chamar-lhe patas) pedaços de casca de uma velha árvore.
Durante minutos esteve assim. À sua volta e espalhadas num raio de talvez cinco metros, estava a criançada e as suas baby sitters, três crias e três fêmeas. Escondidas na vegetação, com uma a espreitar timidamente por entre a folhagem, estavam mais duas crias.




Ainda a mastigar e com algumas cascas na mão, Bwenge virou-se e fitou-nos. Já sabia que iria ser assim.
Tive que calar o apelo do meu lado de criança. Correr, abraçá-lo, fazer-lhe um cutchi cutchi, naquela carantonha enrugada, mal encarada mas absolutamente adorável, levá-lo para casa, pô-lo em cima da minha cama e dormir agarrado a ele. Hummm...

Mas fui obrigado a ser adulto. Deixei-me fascinar pela suavidade dos movimentos de um animal de quase duzentos quilos, pela imensidão da sua cabeça, pela pelagem que o cobria de alto a baixo exceptuando o largo peito, oscilando entre o preto carregado e o cinzento algo brilhante.
O seu rosto (não vou chamar-lhe focinho) profundamente marcado pelas rugas que nascem dos sobrolhos, descem pelo nariz e alargam depois para debaixo dos olhos, conferem-lhe nobreza e sabedoria.




E os olhos... aqueles olhos de castanho cor de mel saltam à vista naquela pelagem escura.
Aqueles olhos que escondidos nas profundezas do seu rosto espelham uma alma que só pode ser tranquila e tolerante.
Dá-lhes um ar de quem não faz mal a uma mosca, um gigante de bom coração.
Mas a aparência pode iludir. É sabido que quando os gorilas soltam a sua raiva, eles explodem em velocidade e força. Os resultados podem ser desastrosos e por vezes mortais.


Tudo no mundo dos gorilas é lento e delicado. Os gestos são feitos com tempo, como se fossem previamente planeados. Comem devagar e deslocam-se sobre os quatro membros, apoiando-se nas articulações dos três dedos do meio, suavemente, quase sem ruído.
As suas mãos vão buscar as folhas e raízes com calma. Giram as suas cabeças lentamente e têm uma paciência imensa com as crias quando estas brincam nos seus dorsos ou se atravessam no seu caminho.




Foram as crias que quebraram outra das regras de Felix - não ultrapassar os sete metros de proximidade. Curiosidade, claro. Aproximando-se, aproximando-se cada vez mais de nós e na nossa direcção. Atrás delas vieram as fêmeas. A intervenção dos dois batedores, agachados e agitando os braços de um lado para outro, a lembrar... gorilas, impediram que se aproximassem ainda mais evitando um muito provável contacto imediato do terceiro grau, mas mesmo assim passaram rente a nós.
Mas a partir desse momento os tais sete metros ficaram sempre mais curtos.


Felix ensinou a fazê-lo. É um som rouco, grave, quase cavernosos e sustentado.Vem do fundo da garganta.
É um pigarrear a dois tempos É fácil e divertido. É uma saudação.
Basicamente significa "Como estás? Estou satisfeito por te ver". Destina-se a aliviar um pouco a tensão que a nossa presença possa induzir no gorila e nos elementos da sua família.
É como pagar uma cerveja e um prato de tremoços a uma pessoa que se acaba de conhecer.

Quando começamos a treinar o som, que ao início mais parecia soluços que outra coisa qualquer, tivemos surpreendentemente logo uma reposta de Bwenge e da fêmea que estava mais próxima dele.
E tempos a tempos, ele e nós produzíamos esse som rouco, essa saudação de satisfação. A coisa resultava mesmo.
Duas espécies afastadas entre si por menos de 5% de património genético, comunicavam num som que provavelmente há milhões de anos atrás terá sido comum às duas.
E melhor ainda. As duas espécies estavam satisfeitas com a presença uma da outra.





Uma hora??? Como já passou uma hora??? Felix tinha sussurrado que mais cinco minutos e tínhamos que descer.
Diabo, tinha apenas mais cinco minutos para guardar para a minha eternidade aqueles rostos enrugados, aqueles olhos melados, o andar vagaroso, de quem tem o tempo todo do mundo.
Talvez eles nem desconfiem do quanto é frágil o mundo onde se movem, as ameaças que pairam na sobrevivência da sua espécie e o esforço que está a ser feito para os salvar.
A mesma espécie que fascinada, os observa, os respeita e ajudava a protegê-los era a mesma que estava empenhada em os destruir. Que raio de dualidade!
Absurdamente, há quem os mate para fazer cinzeiros das suas mãos!


Felix não precisou de fazer uma segunda chamada à realidade. Bwenge e a sua família pareciam saber que a nossa hora tinha chegado ao fim. Bem vistas as coisas, talvez fosse mais a hora deles para que nos pudessem observar que tinha acabado.
Lentamente, como fantasmas pretos num mundo verde viraram as suas costas e desvaneceram-se gradualmente na densa floresta.

Uma das crias ainda cheia de curiosidade virou-se uma última vez para trás em jeito de adeus. Quem sabe se não estaria a guardar na sua cabeça uma última imagem daquele grupo de macacos pelados, que se movimentam na vertical e sem jeito nenhum para andarem na floresta.




Vi-os a ir embora com o meu coração ainda a bater fortemente, incrédulo com a experiência que tinha vivido na última hora.
Tal como o elefante Ganja no Zimbabwe, o cavalo Arandu na Patagónia argentina e as raias na barreira de coral do Belize, o gorila da montanha Bwenge do Ruanda entrou nas páginas mais bonitas que as minhas viagens jamais me proporcionaram.

Uma espécie de mitologia pessoal que aos poucos e poucos se vai enchendo de momentos e vivências incríveis, inesquecíveis e quase indescritíveis.
Aquele tipo de momentos, que garantidamente passarão pelos olhos da minha memória e me farão sorrir antes dos outros olhos se fecharem definitivamente.


Adorei conhecer-te Bwenge. Tens uma família linda.
Como diria o vulcano Spock na sua saudação - que tenhas uma vida longa e próspera.


Comentários

  1. Oi Rita obrigado pelo comentário :)
    Os gorilas da montanha são animais espantosos e ter podido observá-los foi um grande privilégio. Mexeu imenso comigo.

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