série "Outros Rostos do Meu Rosto" - III


O que poderá ser mais simples, mais complexo, mais óbvio e mais profundo que um retrato?

Charles Baudelaire


Eram três amigas sentadas num banco que iam falando entre si.
As senhoras das extremidades usavam chadores pretos e a do meio contrastava fortemente com elas pelo colorido das vestes. Um arrojado hijab laranja caído numa túnica preta com bordados de um castanho alaranjado. Uma combinação bem sucedida. Esta senhora também se destacava das amigas pela forma mais divertida com que se expremia e gesticulava.

Eu estava afastado uns metros razoáveis, sentado num outro banco em frente ao das três amigas, a ler um livro cujo título não me recordo, e não estava com muita vontade de ir até lá.
Estava decidido a aprovetar a oportunidade e "roubar" uma fotografia. Fui tirando várias, sem me preocupar muito com o tempo que estava a demorar procurando a melhor imagem possível. A certa altura, inevitavelmente acaba por acontecer, fui descoberto. Num gesto inútil, pousei de imediato a câmara no meu colo. Não fez sinal para eu parar ou apagar as fotografias que tinha tirado, pelo contrário. Aposto que a seguir fez uma ligeiríssima pose para eu conseguir a minha fotografia. Retomo a câmara e fotografo-a rapidamente mas de uma forma mais tranquila.
Voltou o rosto de novo para mim, eu agradeci-lhe sorrindo, fazendo um aceno com a cabeça e um adeus também discreto. Ela retomou a conversa e eu o meu livro. Quando me fui embora, as três ainda tagarelavam.


Alexandria, Egipto



Sorrio sempre que vejo esta fotografia. Foi divertido fotografá-lo. Um jogo do gato e do rato.
Eu queria fotografá-lo e ele não estava muito afim disso. No entanto a sua curiosidade era muito forte e não fugia.
Enquanto fingia que estava interessado nas casa, que de facto também estava, para que ele se habituasse a mim, eu ia-o olhando de lado.
Sempre que eu virava a minha câmara, ele fazia-se desentendido e virava o rosto.

A certa altura decidi enfrentá-lo e perceber de vez que se estava ou não interessado numa fotografia.
De facto estava, mas não nas minhas condições.
Deixou-se estar em cima do tronco de madeira enquanto eu dançava à volta dele à procura do melhor enquadramento, contudo nunca olhou directamente para a câmara ou para mim.
O que está longe de ser um problema, uma boa parte das vezes não é mesmo. Forçar as pessoas a fazerem um sorriso, uma pose, um olhar ou algo que não seja da sua vontade raramente tem bons resultados.

Optei por escolher esta imagem onde aparece por detrás do rapazito a casa, já que a tinha fotografado tantas vezes e fingido o meu interesse nela, que bem podia ser a dele.
Quis ir mostrar-lhe as fotografias e nem assim ele virou o seu rosto para mim. Estava mesmo determinado em não me olhar.
Enquanto me afastava dele fui apagando várias fotografias daquela casa.

aldeia Bigodi, Uganda


É muito difícil fotografar mulheres em países muçulmanos, pelo menos para um homem.
Há um desconforto evidente nelas, mesmo só no pedido. O que é pena porque as mulheres são interessantes e muito bonitas.
Tendo a aproximar-me, a tentar a minha sorte, quando as mulheres não estão acompanhadas por um homem e não estejam rodeadas por várias pessoas.
No fundo, procuro sempre que possível um lugar recatado.
Curiosamente não foi isso que aconteceu com esta jovem.

Isfahan é uma das cidades mais bonitas do Irão. Moderna e tradicional, cosmopolita e jovem.
No seu centro tem uma enorme praça, com cerca de 560 metros de comprimento e 160 metros de largura, a lindíssima Meiden Emam.
Esta praça está ladeada em todo o seu perímetro por vários edifícios icónicos: a mesquita Sheikh Lotfallah, o pavilhão Ali Kapu, o pórtico Qeyssariyeh e a Royal Mosque.
Imensa gente a atravessa e usufrui desta praça. Fá-lo para sentar-se um pouco, ler, comprar qualquer coisa para comer ou praticar o desporto favorito dos iranianos: fazer picnics.

Apesar de tudo quando esta jovem se deixou fotografar num dos acessos à praça fiquei surpreendido.
Não ofereceu dificuldades ou objecções. Os seus olhos pintados transpiram confiança e determinação. Num gesto a duas mãos fez descair quase totalmente a shayla e prontificou-se para a fotografia.


Isfahan, Irão


É muito difícil não ficar longamente a olhar para os olhos desta criança.
São ao mesmo tempo hipnotizantes e inquietantes. O objectivo é mesmo esse, especialmente o segundo.
Há a crença nos países do sul asiático que as crianças são mais susceptíveis a azares, a doenças e acidentes.
Para as proteger, os seus olhos são pintados de um negro profundo, dando a sensação de serem maiores e mais penetrantes, afastando assim os maus olhados delas.
Foi esse fascínio, a perturbação que senti quando a mãe, ao mesmo tempo pousando o braço protector sobre o filho, me deixou fotografá-la. Mesmo autorizado mal me recordo de a fotografar. Os meus olhos estavam mais focados nos dos seus do quem em outra coisa qualquer.
Só tive a certeza que a fotografia estava bem quando a vi no computador.

Ao longo da minha viagem pela Índia fui encontrando frequentemente crianças assim.
Muitas tinham olhos também pintados, outras tinham só o “risquinho” negro, o famoso eyeliner, a fazer o contorno do olho.
Mas da forma como esta criança estava em Nova Deli, junto a um templo Sikh (Gurudwara), não voltei a ver.

No entanto esta prática tem verdadeiramente um lado negro. A tinta usada chama-se kajal e contém na sua composição chumbo. O envenenamento por este metal pesado é um risco real devido à absorção do mesmo pela pele e pela mucosa do próprio olho.


Nova Deli, Índia



Comentários

  1. Os paradoxos de um retrato, sem dúvida!
    Vê-se pelos ditados portugueses: "Quem vê caras, não vê corações" ou "Os olhos são os espelhos da alma".
    Acredito que se podem verificar ambos os casos em situações diferentes e díspares no tempo.
    Quanto aos que aqui estão, são belos!
    Penso que já aqui vi a jovem do Irão. Tem um olhar sereno, confiante, de quem se sente segura de si.
    O olhar penetrante do menino da Índia atravessa-me a pele:)
    Todas as outras são belas, também. Porque a beleza existe também num rosto cheio de rugas, marcado pela dureza da vida.
    Uma foto deve transmitir autenticidade( à exceção de fotos artísticas, claro). É o que estas fazem.
    Mais uma vez obrigada pela partilha, Pedro.

    Beijinho

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