Ghent, Bélgica - as duas artes da Werregarenstraat


Dei por ela por acaso e logo na entrada certa. 

Chovia fininho, estava um frio suportável, tinha acabado de almoçar e sentia ainda o sabor de um goufre de chocolate, comprado na rua, para sobremesa. 
Tinha duas hipóteses: regressava ao hotel e passava lá o resto da tarde, ou deixava-me perder nas ruas de Gent, caminhando sem rumo ou propósito, olhando quem passava por mim, o que faziam, adivinhando de onde viriam, para onde iriam, o que trazem nas mãos, gizando história para elas.


É um enorme rosto muito bem pintado de Jan Van Eyck que me chama atenção e me faz abrandar ainda mais os meus passos lentos.
Está mesmo na entrada de um beco que na sua esquina tem uma discreta tabuleta que nos diz qual o seu nome: Werregarenstraat. A tradução do nome em neerlandês aponta para uma rua onde o ofício da tecelagem, da fiação e do têxtil, era a actividade dominante. Nos dias que correm o nome não podia ser mais enganador.
Para os panfletos turísticos (que não tinha lido), para os próprios habitantes de Gent e principalmente para os artistas urbanos que a usam como tela, esta rua curvada, pedonal, estreita, tímida e opulenta em cores é conhecida como a Grafitti Street.
Liga a rua Hoogport, de onde caminhava, para o lado oposto, a Onderstraat. São cerca de cinquenta metros, de pura contemporaneidade que liga duas ruas de traça medieval, onde a arte e a "arte" reina. 

A lógica da Werregarenstraat é simples: tudo é permitido. Desde obras de arte a rabiscos sem nexo e geometrias pouco dignas desse nome. O scribble, o bombing e as tags têm direito à existência e à coexistência com o talento. É esta a "arte" que predomina nas paredes de ambos os lados, onde até o chão e gradeamentos são alvos dela. Noutra parede, noutra rua, seria considerado, e bem, vandalismo. Mas na Grafitti Street, a tolerância é total.



Uma cacofonia de cores e formas exuberantes, onde os pretos carregados, os encarnados fortes convivem e se misturam com os fluorescentes mais enervantes numa tentativa de "elevar a voz" entre o caos apesar de a falta de talento ser por si só gritante.
Nesta rua tudo é permitido. Inclusivamente pintar por cima do que já está pintado. Consta no entanto que os principais artistas "policiam" a rua para evitar que os melhores murais sejam vandalizados, apesar de tal ser permitido. Uma regra tácita, nem sempre cumprida, diz que as melhores obras devem ser preservadas. 
Aqui e ali surge algo que se destaca e nos atrai a atenção, uma admiração, um olhar mais atento.
Apenas meia dúzia de pessoas, comigo incluído, exploravam esta rua, fotografando-a ou apontando os indicadores para algum pormenor que tenha chamado a atenção.


É tentador pensar que a Werregarenstraat é uma rua que foi recentemente, e oportunisticamente, tomada por artistas com zero ideias criativas, onde ocasionalmente algo contraria a entropia dominante desta tela urbana. Não é o caso. 
Recuamos até 1995, ao festival "Festas de Ghent" para vermos esta rua tornar-se oficialmente, e com a decisão das autoridades maiores da cidade, tornar-se aquilo que ela é e na qual tinha tropeçado.
Agora, após isto tudo, vale a pena visitar, provavelmente a rua mais colorida de Ghent? Sim, sem dúvida. Porque a Werregarenstraat que visitar nesse dia será única para ti. No dia a seguir, na semana a seguir, no mês a seguir, no ano a seguir, tudo muda e esse dia será irrepetível. 
Será exclusivamente teu e das pessoas que partilharem esse dia, e a Werregaren, contigo.









Comentários

  1. Uma cidade cheia de (en)cantos 😍

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    1. Sim, charmosa. É uma palavra bem adequada para descrever Ghent. Nos cantos, recantos e nos encantos 😉

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